Cultura
Novo Coltrane é descoberta arqueológica, afirma crítico dos EUA
Autor de Kind of Blue, Ashley Kahn acredita que a gravação recém-descoberta é mais um capítulo decisivo na excepcional trajetória do músico


Autor de um livro referencial do jazz, “Kind of Blue – A história da obra-prima de Miles Davis” (Editora Barracuda, 2010), o crítico, historiador, produtor, escritor e pesquisador norte-americano Ashley Kahn foi um dos primeiros a ouvir o álbum recém-descoberto de John Coltrane. Kahn tinha a incumbência de escrever as notas do encarte do novo disco. Professor da Universidade de Nova York, ganhou um Grammy em 2015 pelas notas do encarte do disco Offering: Live at Temple University, de Coltrane. O autor falou com exclusividade sobre o achado.
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CartaCapital: Após esse disco Both Directions at Once, o grupo de Coltrane entrou no estúdio para gravar o seu mais famoso álbum, A Love Supreme, um ano e meio depois. O senhor acredita que esse álbum inédito foi um ensaio prévio do que ele faria em A Love Supreme? Eles têm a mesma qualidade?
Ashley Kahn: Você pode ouvir o som da música espiritual de John Coltrane no seu primeiro disco como bandleader. Apenas dê uma ouvida em While My Lady Sleeps, de 1957, ou Naima, de 1959, ou Out of this World ou Tunji, de 1962. Ou mesmo Nature Boy, canção que está nesse novíssimo disco gravado em 1963. Há elementos musicais, como estruturas modais com ponto de pedal de baixo, fraseado de tons longos no saxofone, que são aspectos da assinatura da mais espiritual música de Coltrane, e é claro, um sentimento muito meditativo e introvertido. Então, a resposta é: sim, absolutamente. Pode-se ouvir as raízes de A Love Supreme nessas sessões. Com Coltrane, nada acontecia subitamente, ele construía, evoluía e desenvolvia cada aspecto de seu som e sua abordagem além do tempo.
CC: Há joias absolutas nesse disco. Entre elas, “11383”, composição extraordinária, que conta com o solo de Jimmy Garrison com arco no baixo. Como foi ouvir esse disco pela primeira vez?
AK: O sentimento foi exatamente como Sonny Rollins descreveu: um tipo de incrível, inesperada descoberta arqueológica que adiciona um novo capítulo a essa já excitante história. Eu amo a ideia que todo o disco foi de fato uma única sessão, não uma faixa gravada aqui, outra ali, mas tudo num mesmo dia, com Coltrane e seu famoso quarteto tentando realmente fazer algo especial acontecer. Esse disco acrescenta mais uma passagem para a fabulosa jornada de Coltrane, e agora com o sucesso popular de Both Directions at Once. Eu espero que uma nova geração seja induzida a penetrar nesse mundo especial e comece a explorar e aprender, como eu mesmo ainda estou fazendo.
A descoberta
Velocidade, insubordinação, vigor, elegância, ferocidade, profundidade assustadora, sacralidade pagã. Ao ressurgir em um disco que ficou 55 anos oculto, a música do saxofonista John Coltrane parece dar total razão aos fiéis que lotam os cultos da Saint John Coltrane Church, em São Francisco, há quase 50 anos.
Both Directions at Once: The Lost Album é a maravilha que chegou do futuro, diretamente de 1963. Gravado em Englewood Cliffs, New Jersey, em 6 de março de 1963 por um dos mais lendários quartetos do jazz (Coltrane e mais McCoy Tyner ao piano, Elvin Jones na bateria e Jimmy Garrison no baixo), o álbum foi uma encomenda da gravadora Impulse!
Por questões acústicas, o disco tinha sido gravado num galpão de 12 metros de altura, com teto de madeira, fabricado no Oregon pela mesma companhia que providenciava hangares para a Segunda Guerra Mundial. Isso enfatiza uma certa sonoridade de catedral que marca as oito faixas inéditas do álbum (lançado em dois discos).
Acontece que a gravadora se mudou para a Costa Oeste dos Estados Unidos após a morte de Coltrane, em 1967, e as master tapes do álbum ficaram armazenadas em um prédio que era parte de um projeto de austeridade econômica da ABC nos anos 1970. Muitas fitas foram descartadas, como as de Coltrane. Mas Trane era Trane. Ele era um dos poucos artistas a quem, após as sessões de gravação, o estúdio dava uma fita com o resultado, tapes que o músico resolveu deixar com sua primeira mulher, Naima.
Essas gravações tinham qualidade admirável e sua existência só foi revelada em 2004, 41 anos depois. Demorou um bocado ainda, mas chegaram, enfim, aos nossos ouvidos.
O título do disco lançado agora tem origem num tipo de manifesto que Coltrane disse para Wayne Shorter durante suas jam sessions nos anos 1950: “Começar uma sentença pelo meio, e então voltar ao começo e ao fim ao mesmo tempo, ambas as direções de uma vez”. Conforme a dinâmica do grupo de Coltrane edifica seu som de oferenda, a música decola de gêneros como blues, folk e baladas para se dissolver em imprevisível abstração.
Antes de a primeira faixa começar, uma voz ao fundo, Coltrane talvez, anuncia o título do take: Original 11383. Acabou virando o nome da canção, já que não chegou a ser batizada.
No interior da faixa, há um solo de baixo com arco de Jim Garrison que parece provir de um pântano após o som cristalino do piano de McCoy, uma raridade em si.
O álbum, já disponível nos serviços de streaming, traz duas composições jamais ouvidas antes (Untitled Original 11383 e Untitled Original 11386) tocadas por Coltrane no sax soprano. Há a única versão de estúdio de sua composição One Up, One Down, com diálogo do visionarismo do sax com o pulso africano de Elvin Jones. Há um clássico de Trane, Impressions (gravado de duas maneiras), imerso numa vertiginosa amplidão harmônica. E há a primeira gravação de Nature Boy, que ele gravaria só mais tarde, em 1965, além da versão de Vilia, da opereta A Viúva Alegre, de Franz Lehar.
A crítica viu no disco um ponto estético com estilhaços dos álbuns My Favourite Things (1964) e A Love Supreme (1965). “As duas direções, ao mesmo tempo”, consistiram, assim, num trajeto entre a tradição e a inovação, entre o estabelecido e o desconhecido, razão suficiente para fazer deste achado uma preciosidade. Outro gigantesco saxofonista do jazz, Sonny Rollins, ao ouvir agora o disco, afirmou: “É como achar um novo quarto na Grande Pirâmide”.
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