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Notas de esperança

Como tem sido forjada, a despeito de todas as crises do País, uma nova e brilhante geração de instrumentistas

Guido Sant’Anna nasceu em Parelheiros, em São Paulo - Imagem: Fritz Kreisler 2022
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É preciso fazer o mundo inteiro cantar. A música é tão fundamental quanto o pão e a água – Villa-Lobos

Nos anos recentes, a convergência entre a crise política e social e as dificuldades geradas pela pandemia não pareceria favorecer, entre nós, grandes expectativas em torno de um futuro luminoso no mundo da música – ou das artes, em geral. Mas, como dizia o protagonista de A Lenda do Pianista do Mar, livro de Alessandro Baricco transposto para o cinema por Giuseppe ­Tornatore, “nada está perdido enquanto temos uma história para contar”.

E temos, neste momento, várias histórias para compartilhar sobre jovens que dedicam horas e horas diárias à busca da excelência artística e que, ao receber, nos últimos meses, reconhecimento em concursos ou apresentações importantes, reavivam aquela chama que nos dá força para olhar ao futuro com alguma esperança.

Na semana passada, chamou atenção da mídia a vitória do violinista Guido Sant’Anna, de 17 anos, na competição internacional Fritz Kreisler, na Áustria. Para quem acompanha a trajetória do garoto nascido em Parelheiros, Zona Sul de São Paulo, sua performance na sala dourada do Musikverein, em Viena, não causou surpresa.

Guido vinha colecionando reconhecimentos nacionais e internacionais com uma velocidade impressionante. E tão impressionante quanto suas conquistas é a sua maturidade ao enfrentar as obras mais desafiadoras e profundas do repertório para violino. Em junho deste ano, ele tocou, com a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), o Concerto para Violino de Johannes Brahms, um dos mais difíceis técnica e musicalmente.

Guido é o primeiro brasileiro a ganhar uma competição do porte da Fritz Kreisler, em Viena

Foi com essa mesma obra que, na fase final, ele conquistou o concurso Fritz Kreisler. Nunca tivemos um violinista brasileiro tão jovem brilhando nos palcos do mundo e jamais tivemos um violinista a ganhar uma competição desse porte.

Se, até 20 anos atrás, era preciso, para formar grupos sinfônicos no Brasil, recorrer a músicos estrangeiros – em especial nas cordas –, hoje a realidade é outra. Os diversos projetos que utilizam a música como instrumento de resgate social e de superação de adversidades ampliaram, nos últimos anos, o acesso ao aprendizado, fazendo com que muitas das barreiras socioeconômicas fossem, ao menos parcialmente, derrubadas.

Há de se levar em conta também o terreno arado por grande número de músicos estrangeiros que foram se estabelecendo aqui e partilhando sua técnica. A primeira “onda”, se assim podemos dizer, foi a migração de europeus que, na década de 1980, vieram tocar na Orquestra Sinfônica da Paraíba, liderada pelo maestro Eleazar de Carvalho (1912-1996). Nessa mesma década, 12 búlgaros desembarcaram no interior paulista para compor a Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto.

A violoncelista Marina Martins, de 23 anos, estuda hoje na Suíça, mas se apresenta rotineiramente no Brasil – Imagem: Marco Costa

Em meados dos anos 1990, foram dois grandes movimentos. Um, capitaneado pelo maestro Júlio ­Medaglia, que trouxe 48 músicos do ­Leste Europeu para criar a Amazonas ­Filarmônica. Alguns anos mais tarde, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), sob o comando de John Neschling, contratou 22 estrangeiros a partir de audições rea­lizadas em Nova York e na Europa. Cheguei à Osesp, vindo de Trieste, na Itália, em 2005. Fui um dos últimos estrangeiros a serem contratados.

Esses estrangeiros todos, com uma bagagem musical formada nas melhores escolas internacionais, foram ampliando as possibilidades de uma didática de qualidade para os jovens brasileiros – em especial, fora do eixo Rio-São Paulo, onde já existiam excelentes professores.

Graças a essa conjunção de fatores, há hoje uma destacada geração. Além de Guido, temos Layla Köhler Baratto, de 22 anos, e sua irmã­ ­Rebecca, de 26; o pianista Lucas Thomazinho, de 27 anos; e a violoncelista Marina Martins, de 23 anos.

Conheci Layla e Rebecca, nascidas em Porto Alegre, quando viajava com certa frequência para Salvador, para dar aulas no projeto Neojiba, fundado pelo pianista e maestro Ricardo Castro. Eram duas meninas talentosas, nascidas em uma família de músicos, e, embora notasse em ambas predisposição e disciplina, tive mais contato com Rebecca, por ser ela violinista. Foi depois de anos que Layla e seu oboé voltaram a cruzar o meu caminho.

Aluna da Academia da Osesp, ela impressionava a todos. Heinz Holliger, um dos maiores oboístas do mundo, após ministrar uma masterclass da qual ela participou, chegou a dizer que Layla era um dos maiores talentos que havia encontrado. Em 2017, Layla, dona de muita segurança e de ideias musicais claras, conquistou o primeiro prêmio no Concurso Jovens Solistas da Osesp e entrou em ­duas das escolas mais conceituadas da Europa, em Zurique e em Berlim, onde está se aperfeiçoando.

Lucas, nascido em São Paulo e formado em piano pela USP e pelo New ­England Conservatory, foi meu parceiro em ­algumas das primeiras apresentações depois da longa pausa nos concertos, devido às medidas de isolamento social. Na preparação para as Quatro Sonatas de ­Beethoven a serem apresentadas via ­streaming, direto da Sala Cecília ­Meireles, no Rio de Janeiro, encarou os desafios de tocar ao vivo sem uma só pessoa na plateia. Se, no início, a sala vazia parece ter dificultado o mergulho no universo beethoveniano, depois de um tempo, a situação parece tê-lo dotado de uma empolgante força de reação. Calmo e simples no trato, Lucas, assim como Guido e Layla, contradiz o estereótipo do grande artista como alguém genioso e temperamental.

Layla Köhler Baratto, oboísta de 22 anos, e Lucas Thomazinho, pianista de 27 anos, têm se apresentado com grandes orquestras e obtido reconhecimentos valiosos – Imagem: Cultura Artística e Ana Paula Lazari

Apesar de ter nascido na Nova Zelândia, a brasileira Marina Martins veio aos 5 anos para São Paulo, onde cresceu e começou a estudar o violoncelo. Foi o amor pelo instrumento que, mais tarde, a levou a estudar nos Estados Unidos e na Alemanha, onde foi aluna do violoncelista P. Whispelwey, em Düsseldorf. Hoje reside na Suíça, mas regressa regularmente ao Brasil para apresentações. As últimas foram, justamente em duo com o pianista Lucas Thomazinho.

Assim como os demais, Marina impressiona pela naturalidade com o instrumento. E se a palavra naturalidade retorna é porque um dos segredos dos virtuosi é transformar o instrumento em um prolongamento do corpo humano. É considerar e tratar o instrumento como algo que nos pertence, não como algo externo. É isso que notamos ao ver Guido, com sua expressão séria e despreocupada, moldar cada frase da partitura. Guido começou a tocar aos 5 anos e, com 8, tocou pela primeira vez com uma orquestra – à altura, foi entrevistado no Programa do Jô. Desde os 9 anos, é bolsista do Cultura Artística.

A jornada, no entanto, como a de qualquer músico erudito, é árdua e pode reservar, inclusive, surpresas desagradáveis. Certa vez, Guido foi barrado na Rússia, a caminho de um concurso, por causa de um documento que supostamente faltava – descobriu-se depois ser um erro da própria instituição. Foram horas trancado em um quarto, sem poder comer, sem um copo d’água, sem poder ir ao banheiro. Guido conta, além do talento e da dedicação, com o acompanhamento da violinista Elisa Fukuda, sua professora, que o tem ajudado a construir, com cuidado, essa carreira que se anuncia brilhante.

Há, certamente, além desses quatro, outros tantos jovens que, com esforço e tenacidade, não se curvam aos empecilhos erguidos por um governo que parece menosprezar os artistas em geral. Às vezes, começam a estudar sem nem possuir um instrumento e, depois, passam horas e horas acompanhados pela música, conversando sobre ela e tocando. Parafraseando Villa-Lobos, estão todos eles “escrevendo cartas para a posteridade sem esperar respostas”. •


*Spalla da Osesp.


AÇÃO SOCIAL E MÚSICA

Os mais importantes projetos de formação por meio de orquestras usam a Lei Rouanet

Em todos os processos envolvendo a tentativa de desmoralização pública da Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, é comum que sejam publicizados – sempre de forma negativa – os projetos propostos por artistas famosos.

Uma década atrás, Maria Bethânia foi criticada por ter captado 1,3 milhão de reais para fazer um blog. Nos anos recentes, os ataques ao mecanismo de renúncia fiscal, quase um lugar-comum nas redes bolsonaristas, miram os artistas de esquerda, acusados reiteradamente de uso indevido da lei.

O que quase nunca ganha destaque, quando se fala em lei federal de incentivo à cultura, são as iniciativas de integração social por meio de instrumentos de orquestra para crianças e jovens. E algumas delas, como o bem-sucedido Projeto Guri, não apenas têm ótimos resultados como são grandes captadoras de recursos.

Se um relato como este feito por Emmanuele Baldini é hoje possível, é também porque tivemos uma estrutura que possibilitou a formação de parcerias entre o Poder Público e a iniciativa privada. Cabe observar que, além dessas ações de recorte social, a lei costuma dar sustentação aos projetos formativos que integram muitos dos grupos sinfônicos que usam a Lei Rouanet.

Há hoje, no País, dezenas de projetos que enlaçam ação social e ensino de música. Deve haver alguns inexpressivos, mas há, sem dúvida, muitos relevantes, como é o caso do citado Projeto Guri, espalhado pelo estado de São Paulo, do Projeto Neojiba, em Salvador, e do Instituto Baccarelli, responsável pela Orquestra Heliópolis.
– Por Ana Paula Sousa

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1229 DE CARTACAPITAL, EM 12 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Notas de esperança”

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