Cultura
Nossa existência em 24 horas
O cientista inglês Russell Foster detalha, em um livro, de que forma funciona o relógio biológico humano


Nascido em Aldershot, no nordeste da Inglaterra, em 1959, Russell Foster é professor de neurociência circadiana na Universidade de Oxford e diretor do Laboratório de Oftalmologia Nuffield. Por sua descoberta sobre fotorreceptores oculares não bastonetes e não cones – os dois tipos conhecidos de receptores do olho humano – recebeu vários prêmios.
Seu último livro, O Ciclo da Vida – Como a Nova Ciência do Relógio Biológico Pode Revolucionar Seu Sono e Sua Saúde, acaba de ser lançado no Brasil.
The Observer: O que é neurociência circadiana?
Russell Foster: É a compreensão de como a nossa biologia funciona 24 horas por dia. Mas é mais que isso: é a compreensão de como diferentes estruturas interagem no cérebro e como diferentes genes e seus produtos proteicos geram um comportamento complexo.
TO: É um campo emocionante?
RF: Nos últimos 25 anos, houve um avanço na compreensão de como essas oscilações internas de 24 horas são geradas. A meu ver, esta é uma das incríveis histórias de sucesso na biomedicina. Um dos grandes objetivos da neurociência é identificar partes do cérebro com funções diferentes, e uma delas é o núcleo supraquiasmático (SCN), com 50 mil células. Esse núcleo é o marca-passo circadiano. Sem ele, nossos ritmos de 24 horas, simplesmente, desaparecem.
TO: Como surgiu seu interesse pela pesquisa circadiana?
RF: Foi, em grande parte, por causa dos fotorreceptores. Durante a graduação em Zoologia, li o extraordinário The Life of Vertebrates (A Vida dos Vertebrados), de J. Z. Young, e me deparei com um trecho sobre lampreias. Elas têm um terceiro olho na região parietal que os mamíferos não possuem. Nós temos apenas fotorreceptores oculares, enquanto peixes, répteis e pássaros possuem diversos tipos de fotorreceptores. Achei isso muito legal. No doutorado, tentei compreender como a luz é detectada e medida para regular a biologia sazonal das aves. E então comecei a abordar o que parecia uma questão simples: como são regulados os relógios dos mamíferos? Não temos fotorreceptores além daqueles usados para a visão. Temos células visuais que captam a luz numa fração de segundo, e depois a esquecem. Como esse sistema sensorial de luz pode ser usado para coletar informações sobre a luz durante longos períodos de tempo – do amanhecer ao anoitecer? No início da década de 1990, sugerimos que havia um terceiro fotorreceptor, até então não identificado, no olho humano, o que gerou grande clamor. Como eu sabia que existiam fotorreceptores não bastonetes e não cones em pássaros e peixes, dar o salto conceitual de dizer “talvez haja outro fotorreceptor dentro do olho dos mamíferos” não foi tão difícil.
O Ciclo da Vida. Russell Foster. Tradução: André Fontenelle. Objetiva (432 págs., 119,90 reais)
TO: O que o levou a escrever este livro?
RF: Esse desenvolvimento extraordinário na pesquisa circadiana e do sono é importante para a nossa saúde global. Então, eu queria tornar esse conhecimento o mais acessível possível e ajudar as pessoas a tomarem decisões com base em informações. Outro elemento que me mobilizou foi fazer um contra-ataque aos sargentos do sono, que gritavam: “Você tem que dormir oito horas” ou “Você não pode olhar um Kindle antes de ir para a cama”. Isto é, simplesmente, errado. O sono é como o tamanho do sapato: um tamanho não serve para todos.
TO: O mundo moderno causou estragos em nossos relógios biológicos. Foi tudo para o mal?
RF: A possibilidade de entrar pela noite fazendo o que se quer por causa da luz elétrica barata teve grande impacto no desenvolvimento das sociedades humanas, nas interações sociais e no comportamento. Mas levamos as coisas um pouco longe demais: achamos que não somos limitados pela nossa biologia, mas somos. Temos a biologia de 24 horas e podemos forçá-la um pouco para um lado ou para outro, mas, se não a respeitarmos, teremos problemas.
TO: Quais são alguns desses problemas?
RF: O trabalho noturno, por exemplo, tem uma enorme bagagem de problemas associados – 97% dos trabalhadores em turnos não se adaptam. Doenças coronárias, câncer, imunossupressão, síndrome metabólica, diabetes tipo 2 e obesidade são hoje mais prevalentes porque levamos nossa biologia além dos limites normais. Isso não quer dizer que tenhamos de colocar a sociedade do 24/7 de volta na sua garrafa. Esse modelo veio para ficar, mas devemos buscar formas de mitigá-lo.
TO: Existem pessoas matinais ou noturnas, do ponto de vista biológico?
RF: Certamente. Há uma predisposição genética para mudanças sutis em alguns desses genes do relógio que vão acelerá-lo ou desacelerá-lo. Mas é mais que isso. Ele muda com o desenvolvimento e, a partir dos 10 anos, há uma tendência a se querer ir para a cama cada vez mais tarde. As mulheres atingem o pico mais cedo, aos 19 anos e meio; os homens, aos 21. À medida que envelhecemos, tendemos a nos tornar mais matutinos novamente. Então, no fim dos 50 anos e início dos 60, nos levantamos e vamos para a cama mais ou menos na mesma hora que quando tínhamos 10 anos. Isso também tem a ver com o momento em que você vê a luz. Ver a luz do crepúsculo atrasa o relógio, fazendo-o acordar mais tarde, enquanto a luz da manhã o adianta.
Luminosidade. Foster foi premiado por sua descoberta sobre um fotorreceptor ocular desconhecido
TO: Faz diferença a hora do dia em que nos exercitamos?
RF: Houve um bom estudo há alguns anos que comparou o desempenho atlético dos tipos matutino, médio e tardio. O desempenho atlético dos tipos matutinos atingiu o pico ao meio-dia; dos tipos intermediários às 15 ou 16 horas e, dos tipos tardios, às 19 horas. Portanto, se você busca potência e desempenho máximo, é importante correlacionar a prática esportiva com o seu cronótipo. Mas, se você deseja queimar calorias, faça exercícios antes do café da manhã. E, se deseja atingir o máximo desempenho atlético e ter mais energia por mais tempo, faça isso no fim do dia. Mas tome cuidado para não fazer exercícios muito perto da hora de dormir. Isso pode aumentar a temperatura corporal central, e um fator que nos faz adormecer é uma ligeira queda da temperatura corporal central.
TO: O horário das nossas refeições é importante? E uma grande refeição à noite é uma má ideia?
RF: Péssima ideia. Maimônides disse: “Coma como um rei pela manhã, um príncipe ao meio-dia e um camponês ao jantar”. E ele estava certo. Estudos demonstraram que, essencialmente, nosso metabolismo está preparado para absorver e queimar calorias durante a primeira parte do dia e depositá-las na forma de gordura no fim do dia. Se você não se exercitar mais tarde, não vai queimar essas calorias. No estudo, as pessoas perderam muito mais peso com um horário de alimentação mais cedo.
“O sono é como o tamanho do sapato: um tamanho não serve para todos”, diz o cientista, para explicar a neurociência circadiana
TO: O senhor escreve que a capacidade de tomar decisões pode variar dependendo da hora do dia.
RF: Sim, um estudo da Austrália comparou o nível de comprometimento cognitivo com álcool versus comprometimento cognitivo às 4 horas. O nível de comprometimento com a hora do dia foi, na verdade, maior. Portanto, se você estiver dirigindo seu carro nas primeiras horas da manhã, sua capacidade de dirigir será pior em termos de cognição do que se você estivesse legalmente bêbado.
TO: Quais são três coisas simples que podemos fazer para melhorar o nosso sono?
RF: O ponto principal é que o estresse e a ansiedade são inimigos do sono, então, no fim do dia, você precisa encontrar maneiras de desestressar. Como biólogo celular mecanicista, sempre pensei que a atenção plena é um pouco como agitar cristais. Mas não é. Há evidências muito claras de que ela realmente ajuda você a se controlar e desestressar. Já falamos sobre obter a luz da manhã para acertar o relógio. Também ajuda tornar o quarto um verdadeiro refúgio para dormir. É claro que depende das circunstâncias econômicas de cada um, mas o ideal é que seja escuro e fresco e que você tenha um bom colchão e travesseiro. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1278 de CartaCapital, em 27 de setembro de 2023.
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