Cultura
Nós, robôs
O cientista da computação norte-americano Ray Kurzweil prevê que, até 2045, a tecnologia terá expandido a inteligência humana em 1 milhão de vezes


O cientista da computação norte-americano e tecno-otimista Ray Kurzweil é uma antiga autoridade em Inteligência Artificial (IA). Seu best seller A Singularidade Está Próxima, de 2005, atiçou a imaginação com suas previsões de ficção científica de que os computadores atingiriam a inteligência de nível humano em 2029 e que, por volta de 2045, nos fundiríamos com os computadores, tornando-nos “super-humanos”.
Ele chamou isso de “singularidade”. Passadas duas décadas, Kurzweil, de 76 anos, lançou uma sequência, A Singularidade Está Mais Próxima: A Fusão do Ser Humano com o Poder da Inteligência Artificial, e algumas de suas previsões não parecem mais tão malucas. Kurzweil, que trabalha como diretor de pesquisa e visionário de IA no Google, falou ao Observer sobre sua atuação como autor, inventor e futurista.
The Observer: Por que escrever este livro?
Ray Kurzweil: A Singularidade Está Próxima falava sobre o futuro, mas, 20 anos atrás, quando as pessoas não sabiam o que era Inteligência Artificial. Agora que a IA domina a discussão, é hora de dar uma nova olhada no progresso que tivemos e nos avanços que virão.
TO: Suas projeções para 2029 e 2045 não mudaram…
RK: Me mantive coerente. A inteligência de nível humano é a IA que atingiu a capacidade dos humanos mais preparados em um campo específico, e até 2029 isto será alcançado na maioria dos aspectos. Poderá haver, após 2029, alguns anos de transição até que a IA supere os melhores humanos em certas capacidades, como escrever roteiros vencedores do Oscar ou gerar conceitos filosóficos profundos. AGI significa uma IA capaz de fazer tudo o que qualquer humano consegue fazer, mas em um nível superior. A AGI parece mais difícil, mas minha estimativa de cinco anos é, na verdade, conservadora.
A Singularidade Está Mais Próxima: A Fusão do Ser Humano com o Poder da Inteligência Artificial. Ray Kurzweil. Tradução: Renato Marques. Goya/ Aleph (400 págs., 99,90 reais) – Compre na Amazon
TO: O que falta hoje para levar a IA aonde o senhor prevê que ela estará em 2029?
RK: Uma coisa é mais poder computacional. Isso permitirá melhorias na memória contextual, raciocínio de senso comum e interação social – áreas em que as deficiências permanecem. Então precisamos de melhores algoritmos e mais dados para responder a mais perguntas. Em 2029, certamente, as alucinações dos LLMs (quando eles criam respostas sem sentido ou imprecisas) se tornarão muito menos problemáticas. O problema ocorre porque eles não têm a resposta, e não sabem disso. À medida que ficar mais inteligente, a IA será capaz de entender o seu próprio conhecimento com mais precisão e relatar com exatidão aos humanos quando não souber.
TO: O que é exatamente a Singularidade?
RK: Hoje, temos um tamanho de cérebro além do qual não podemos ir para ficarmos mais inteligentes. Mas a nuvem tem se tornado mais inteligente e tem crescido sem limites. A Singularidade, que é uma metáfora emprestada da física, ocorrerá quando fundirmos nosso cérebro à nuvem. Seremos uma combinação de nossa inteligência natural com a nossa inteligência cibernética. Haverá interfaces cérebro-computador que, em última instância, serão nanobots – robôs do tamanho de moléculas – que entrarão de forma não invasiva em nossos cérebros por meio dos vasos capilares. Expandiremos a inteligência 1 milhão de vezes até 2045, e isso aprofundará nossa percepção e consciência.
TO: É difícil imaginar como seria isso, mas não parece muito atraente…
RK: Pense como se tivesse o celular no seu cérebro. Se você fizer uma pergunta, o cérebro poderá ir até a nuvem em busca de uma resposta, de modo semelhante ao que você faz com o celular hoje. Só que será instantâneo, não haverá problemas de entrada ou saída, e você não perceberá que foi feito.
TO: E quanto ao risco existencial dos sistemas avançados de IA – que eles poderiam adquirir poderes imprevistos e prejudicar seriamente a humanidade?
RK: Tenho um capítulo sobre riscos. Estou envolvido na tentativa de encontrar a melhor maneira de seguir em frente e ajudei a desenvolver os Princípios de IA Asilomar (um conjunto de diretrizes para o desenvolvimento responsável da IA). Precisamos estar cientes do potencial da IA e monitorar o que ela está fazendo. Mas, simplesmente, ser contra não é sensato: as vantagens são muito profundas.
TO: O senhor afirma que o teste de Turing, no qual uma IA pode comunicar-se por texto sem diferença de um humano, será provado até 2029. Mas para isso a IA precisará ser emburrecida. Como assim?
RK: Os seres humanos não são tão precisos e não sabem muitas coisas! Você pode perguntar a um LLM especificamente sobre qualquer teoria em qualquer campo, e ele responderá de forma muito inteligente. Mas quem poderia fazer isso? Se um humano respondesse assim, você saberia tratar-se de uma máquina. O propósito de emburrecê-la deve-se ao fato de o teste tentar imitar um humano.
Tecno-otimista. Ray Kurzweil, de 76 anos, é diretor de pesquisas do Google e tornou-se um autor best seller em 2005, ao prever o futuro da Inteligência Artificial – Imagem: Sam Grandchi
TO: Nem todo mundo, provavelmente, terá condições de pagar pela tecnologia do futuro que o senhor imagina. A desigualdade tecnológica o preocupa?
RK: Ser rico permite que você tenha acesso a essas tecnologias em um ponto inicial, num momento em que elas não funcionam muito bem. Quando eram novidade, os celulares eram muito caros e faziam um péssimo trabalho. Hoje são muito acessíveis e extremamente úteis. Com a IA vai ser a mesma coisa.
TO: O livro analisa em detalhes o potencial de destruição de empregos da IA. Devemos nos preocupar?
RK: Sim e não. Certos tipos de emprego serão automatizados, e as pessoas serão afetadas. Mas novas capacidades também criam novos empregos. Um trabalho como “influenciador de rede social” não tinha sentido dez anos atrás. A renda básica universal começará na década de 2030, o que ajudará a amortecer os danos aos empregos.
TO: Há outras maneiras alarmantes, além da perda de empregos, de como a IA poderá transformar o mundo: espalhando desinformação, causando danos por meio de algoritmos tendenciosos e sobrecarregando a vigilância. O senhor não se detém muito sobre esses aspectos…
RK: Temos de trabalhar em certos tipos de problemas. Temos uma eleição chegando, e os vídeos deepfake são uma preocupação. Em questões de preconceito, a IA está aprendendo com os humanos, e os humanos têm preconceitos. Estamos progredindo, mas não estamos aonde queremos estar. Também há questões em torno do uso justo de dados pela IA que precisam ser resolvidas por meio de processos jurídicos.
“Na década de 2030, cada ano de vida que perdermos com o envelhecimento, o progresso científico poderá recuperar”
TO: Muitas pessoas serão céticas em relação às suas previsões sobre a imortalidade física e digital. O senhor prevê que, na década de 2030, haverá nanobots médicos que poderão entrar em nossos corpos e realizar reparos.
RK: Tudo está progredindo exponencialmente: não apenas o poder da computação, mas a nossa compreensão da biologia e nossa capacidade de engenharia em escalas muito menores. No início da década de 2030, cada ano de vida que perdermos com o envelhecimento, o progresso científico poderá recuperar. Não é uma garantia de viver para sempre – ainda há acidentes –, mas a probabilidade de morrer não aumentará ano a ano.
TO: Qual é o seu plano para a imortalidade?
RK: Meu primeiro plano é permanecer vivo, portanto, atingir a velocidade de escape da longevidade. Tomo cerca de 80 comprimidos por dia para ajudar a me manter saudável. O congelamento criogênico é o plano alternativo. Também pretendo criar um replicante de mim mesmo (um avatar de IA na vida após a morte), que é uma opção que acho que todos teremos no fim dos anos 2020.
TO: O que deveríamos fazer agora para nos preparar melhor para o futuro?
RK: O futuro não será nós versus a IA: a IA está indo para dentro de nós. Ela nos permitirá criar coisas que antes não eram viáveis. •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1334 de CartaCapital, em 30 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Nós, robôs’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.