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Nos bastidores da produção

Para realizar Medusa, exibido em Cannes e lançado esta semana, Vânia Catani acumulou dívidas e dissabores

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MAKING OFF. Vânia, há 24 anos no mercado, teve de lidar com o governo Bolsonaro, a crise na Ancine e a pandemia – Imagem: Bruno Mello/Music Box Films e Vânia Cardoso
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Na terça-feira 14, dois dias antes da chegada de ­Medusa aos cinemas, a produtora Vânia Catani postou nas redes sociais a foto de um dos dias de filmagem do longa-metragem, em 2019. “Nessa noite da foto, eu estava feliz e não sabia o que me esperava e o que o mundo se tornaria, nem imaginava o longo percurso que percorreríamos até esta estreia comercial”, escreveu.

Medusa é a 31ª produção de sua empresa, a Bananeira, que debutou no cinema em 1999, com Outras Estórias, dirigido por Pedro Bial, e teve, ao longo da carreira, cinco filmes selecionados para o Festival de Cannes, dois para Veneza e outros dois para Berlim.

Medusa começou a ser pensado pela diretora e roteirista Anita Rocha da Silveira em 2015 e, em 2017, quando a Bananeira recebeu um prêmio pelo desempenho do primeiro longa-metragem da diretora, Mate-me Por Favor (2015), decidiu investir no projeto. Acontece que, no ano seguinte, o clima no Brasil começou a se mostrar pesado para a realização de um filme sobre uma gangue de jovens religiosas que se unem para agredir mulheres consideradas promíscuas.

“Levou dois anos para os recursos começarem a ser liberados, mas a gente queria filmar logo, com medo de que o Brasil virasse o que de fato virou”, diz Vânia. “Peguei empréstimos e, em setembro de 2019, fomos para o set.” Nesse momento, a Agência Nacional do Cinema ­(Ancine) sofria duas pressões: uma do Tribunal de Contas da União (TCU), que questionava o modelo de prestação de contas em vigor, e outra do governo Bolsonaro, que chegou a ameaçá-la de extinção.

Filmagens concluídas, Vânia entendeu que precisava correr para finalizar Medusa e inscrevê-lo na seleção de ­Cannes. Mais dívidas. “Recebi o convite de Cannes no dia 13 de março, o mesmo dia em que tudo fechou no Rio, e a pandemia oficialmente começou”, recorda.

O Festival de Cannes foi cancelado em 2020 e Medusa foi apresentado na Quinzena dos Realizadores em 2021, numa edição sombreada pelo abre-e-fecha do mundo. “Ainda tivemos de correr atrás de recursos para pagar a trilha sonora, porque, sem isso, não poderia haver exibição pública”, conta a produtora.

Nesse mesmo ano, o filme saiu como o grande vencedor da Première Brasil do Festival do Rio. Embora viesse angariando visibilidade e prestígio, não podia ser lançado no circuito por falta de verba. Enfim, essa hora chegou. Na quinta-feira 16, Medusa entrou em cartaz em 20 salas de 13 cidades brasileiras.

“Em outros tempos, um filme como este teria uma estreia maior. A gente nunca conseguiu se comunicar de fato com o público, mas, agora, a situação está bem pior”, diz Vânia, referindo-se à configuração do mercado pós-pandemia.

Os dados preliminares do informe anual publicado pela Ancine são de que, em 2022, só 4,2% do público dos cinemas foi ver uma produção brasileira. E isso não tem a ver com falta de filme. Ao contrário. No ano passado, foram lançados no circuito 385 longas-metragens, sendo 173 brasileiros e 212 estrangeiros.

“A gente nunca conseguiu se comunicar de fato com o público, mas agora está bem pior”

Vânia, ao tentar refletir sobre esse cenário, toca em uma questão incômoda: “Tivemos um momento de deságue de dinheiro e fizemos filmes aos borbotões. Esses filmes tinham certa liberdade criativa, e, às vezes, iam para o set sem estarem necessariamente desenvolvidos, sem terem tido um tempo de maturação”.

A produtora, ao olhar para trás no tempo, diz sentir-se como quem viveu uma ilusão. “Eu achava que o cinema brasileiro iria se colocar no mercado mundial como player de verdade”, diz. “Tem a vaidade, as deformações do ego, mas eu acreditava que esses filmes que não faziam nem 6 mil espectadores caminhavam para uma competitividade internacional. A gente achou que estava rico, mas estava era se endividando.”

Vânia refere-se a outro ponto sensível da política audiovisual brasileira: a prestação de contas dos projetos feitos com recursos públicos. Em 2019, o TCU publicou um acórdão no qual questionava o método de análise dos projetos e apontava o risco de colapso na agência.

Vinha assim à tona uma grave crise, que apenas este ano se mostrou solucionável. Em conversas com o TCU, a Ancine fez valer o entendimento de que as contas não analisadas prescrevem e, agora, estuda como efetivar as prescrições. “Se isso se consolidar, para mim vai ser mais importante do que se eu ganhasse o Oscar”, diz Vânia.

A produtora recorda-se do DARF que recebeu da Ancine em 2017, no valor de 700 mil reais. A dívida dizia respeito a um projeto antigo, concluído, que teve notas fiscais questionadas e acumulou juros e multas. “Passei anos negociando com um funcionário da Ancine, justificando coisa a coisa e tentando diminuir o valor. Eram reuniões humilhantes”, diz. “É claro que as prestações de contas tinham de ser analisadas, mas não com 15 anos de atraso.”

Até 2019, a Bananeira tinha 19 funcionários contratados. Hoje, tem três. Uma dessas pessoas tem a exclusiva função de atender a diligências e responder questões relativas aos projetos que seguem em aberto na Ancine.

“Quando penso no meu CPF, e no tanto de responsabilidades que recaem sobre ele, me arrependo de ter me tornado produtora no Brasil”, disse Vânia, na entrevista a CartaCapital. Mas, pouco depois, no post emotivo às vésperas da estreia de mais um projeto que botou de pé, matizou: “A despeito de todas as decepções, perdas e frustrações, sigo pelo cinema, minha paixão absoluta”. •

Publicado na edição n° 1251 de CartaCapital, em 22 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Nos bastidores da produção’

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