Cultura
No convés do Brasil Império
A Viagem de Pedro tira o pó da história, mas mantém, da travessia de Dom Pedro I, a sensação de náusea


A Viagem de Pedro, em cartaz no cinema desde a quinta-feira 1º, começa onde Independência ou Morte (1972) termina. O Dom Pedro I vivido por Tarcísio Meira (1935-2021) saía de cena despedindo-se do filho. O Dom Pedro I vivido por Cauã Reymond, 50 anos depois, entra em cena dizendo adeus a um desamparado garoto de 5 anos.
O longa-metragem dirigido por Laís Bodanzky, a convite de Reymond, faz a travessia que o velho sucesso cinematográfico do diretor Carlos Coimbra (1925-2007) não contemplou: o retorno do ex-imperador a Portugal, em 1831, oito anos após a proclamação da Independência.
Se a estampa de galã do personagem se mantém intacta, o mesmo não se pode dizer de sua alma. Enquanto Tarcísio deu vida a um homem forte, boêmio e mulherengo, Cauã encarna um homem mulherengo, sim, mas perturbado e fragilizado.
“Não faria sentido reiterar o imaginário desse personagem como um herói ou como um cara chulo, uma caricatura de um mulherengo e de um ignorante”, diz a realizadora. “Os dois lados são ruins, porque ele não era nem uma coisa nem outra.”
Projeto ambicioso, tanto no tamanho da produção quanto na busca de uma nova abordagem da história, A Viagem de Pedro, curiosamente, estabelece um sutil diálogo com o pequeno primeiro longa-metragem de Laís, Bicho de Sete Cabeças (2000). Em ambos os roteiros, a loucura, ou o espelhamento entre aquilo que sentimos e aquilo que os outros nos dizem sobre nós, está sempre à espreita.
“Faço um cinema de personagens, mais do que de fatos”, diz Laís, resumindo, de alguma forma, as ficções que dirigiu. “Me sinto à vontade falando sobre o universo íntimo das pessoas: suas angústias, suas escolhas, suas culpas. Trouxe minha forma de fazer cinema para esse personagem. Só que ele é bem complexo e, ainda por cima, é de outra época.”
Não menos complexa do que a figura de Dom Pedro I – que ainda alimenta o imaginário de uma direita literalmente desejosa de seu coração – era, no projeto, a própria natureza das filmagens.
A trama se passa no meio do Oceano Atlântico, dentro de uma fragata na qual membros da Corte, oficiais, serviçais e negros escravizados ou libertos, sob o balanço nauseante da maresia, vivem conflitos, experimentam o desejo e praticam a fé.
Nessa embarcação se passam os grandes momentos do filme, sempre entremeados por cenas em flashback, nas quais Pedro revê a infância, o casamento com Leopoldina, o romance com Domitila de Castro e imagina discussões com o irmão.
“Muitas vezes, o take dava errado porque os atores, de fato, caíam com o balanço do cenário”, diz Laís
“Do ponto de vista da logística de filmagem, foi, sem dúvida, meu filme mais difícil”, atalha Laís, antes de iniciar a descrição de sua aventura internacional.
Coproduzido por Brasil e Portugal, A Viagem de Pedro foi filmado no Palácio Nacional de Queluz, a caminho de Sintra, no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa, na Ilha do Faial, nos Açores, no mar brasileiro, entre Salvador e Niterói, e na cidade de Rio das Flores, no interior do Rio de Janeiro, quase divisa com Minas Gerais.
A travessia entre a Bahia e o Rio foi feita ao longo de cinco dias no navio-veleiro Cisne Branco, da Marinha. “Essa filmagem foi quase um documentário”, define a diretora. “A embarcação tinha de funcionar normalmente e sobravam 18 lugares para elenco, equipe de foto, de som, de arte, de figurino, maquiagem, assistência de direção, produção. É na contramão do que se imagina para uma superprodução, né?”
A embarcação que se vê em cena é a soma do Cisne Branco com uma reprodução, em estúdio, da fragata a vela hoje ancorada em Lisboa como um barco-museu.
“A inspiração dos corredores apertados, com pouca luz, da cozinha aberta, as redes penduradas e dos vários andares que reproduzem a hierarquia das classes sociais veio dessa fragata”, conta a diretora. Foram montados, ao todo, sete cenários. Alguns deles eram pendurados no teto, com elásticos, para balançar. “Muitas vezes, o take dava errado porque os atores, de fato, caíam com o balanço do cenário.”
Para reproduzir a tempestade, a equipe instalou, na base da Marinha, em Niterói, tonéis de água. “A gente tinha quatro ondas!”, rememora Laís, rindo. “A gente não podia errar. Era uma superprodução, mas o dinheiro era curto para aquilo que a gente se propôs a fazer. Não é Titanic, né? A gente estudou o making of de várias produções de barco e eu falava: quem me dera ter aquela estrutura.”
O que ficou na tela é, contudo, grandioso e impactante. A reconstituição histórica, feita não apenas por meio de objetos e figurino, mas pelos próprios modos de interpretação, transporta o espectador para um ambiente que nos oferece uma iconografia original de uma época que, por décadas e décadas, foi retratada de forma oficial e romantizada.
Em termos de representação – um tema incontornável em 2022 –, é especialmente forte, no filme, a presença do elenco negro, que contempla atores do Congo, de Moçambique, da Guiné e do Brasil. “Essa mistura foi importante para tentar reproduzir a diversidade cultural e religiosa dos negros que vieram para o Brasil, arrancados de suas comunidades”, diz Laís. “Eu queria um elenco que nos ajudasse a reconstituir quem eram aquelas pessoas. Até porque essa diversidade espelha o Brasil de hoje.”
Ao rever o passado com o olhar do presente, marcado pelas questões de gênero, raça e representatividade, Laís Bodanzky tira o pó da história. Enquanto Independência ou Morte, abraçado pela ditadura militar na festa dos 150 anos da Independência, celebrava nossa suposta força, A Viagem de Pedro, lançado às vésperas dos 200 anos, mantém, da travessia original, a sensação de náusea. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1224 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “No convés do Brasil Império”
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