Cultura
Ninfomaníaca
O ambiente lúgubre criado por Lars von Trier para falar sobre vício em sexo e perda do afeto leva a uma pergunta: por que tanta culpa para falar de um tema ainda tabu?
Charlotte Gainsbourg participava de uma entrevista coletiva sobre Melancolia em Cannes quando Lars von Trier comunicou que seu próximo filme, para o qual ela estava convidada, seria uma história pornô. “Achei que fosse brincadeira. Lars é muito engraçado”, relembra a atriz, quase três anos depois, em depoimento para o lançamento de Ninfomaníaca – o tal filme pornô que estreia na sexta-feira 10 em 16 cidades do País*.
Charlotte ainda não sabia, mas o convite era mais do que se desfazer das roupas: era eliminar, na sequência de Melancolia, os traços principais de Claire, a prestativa irmã de Justine (Kirsten Dunst) no filme que acabava de ser lançado. Em um mundo prestes a desaparecer, Claire era a ponte que tentava manter unidos dois universos: um, encarnado por Justine, de desencanto; outro, de apego a uma ordem familiar, social e afetiva. O desinteresse de Justine em sua própria festa de casamento era o contraste do esforço da irmã para que tudo saísse perfeito na noite perfeita com os convidados perfeitos da mulher perfeita.
Mas o mundo um dia acaba, e a essência está longe das convenções, parecia dizer o diretor dinamarquês ao detonar aquele universo de afetações com um asteroide ao som de Tristão e Isolda, de Wagner. Curioso que, logo nos primeiros minutos de Ninfomaníaca, o espectador tenha a impressão de que o Planeta de fato acabou: não há luz nem calor nem sinal de vida no ambiente sombrio apresentado. Estirada no chão, Joe (Gainsbourg) sangra como quem acaba de sofrer uma surra (ou o Armageddon anunciado no filme anterior). Não sabemos quem é o agressor nem o que a levou àquele estado de abandono.
Ela é resgatada por Seligman (Stellan Skarsgard), um homem de idade avançada que lhe oferece uma xícara de chá com leite e um abrigo. Em um quarto tão sombrio como a rua onde foi encontrada, Seligman tenta entender o que aconteceu. Joe avisa: “Eu mereci isso. Essa história começou quando eu tinha dois anos”.
Têm início, então, os primeiros 118 minutos do filme – a segunda parte deve ser lançada em março. Nessa etapa, uma surrada Joe dá início ao relato sobre que a transformou, segundo suas próprias palavras, em um ser abjeto. É como uma sessão de terapia: de um lado, a paciente viciada em sexo que busca nos relatos da infância e adolescência a origem de sua miséria (nessa fase, a jovem Joe é interpretada por Stacy Martin); de outro lado está Seligman, que tenta racionalizar a ação da personagem. Joe conta como perdeu a virgindade, como se apaixonou pelo sujeito e como conquistou e se desfez de uma multidão de homens com os quais não se importava. Em uma das cenas, relata como se relacionava com um homem casado, a quem desprezava, que certa vez chegou na casa dela de mala e cuia. Atrás dele vinham os três filhos e a mulher, interpretada por Uma Thurman, que fez questão de conhecer o local onde a traição era consumada (detalhe: a casa da jovem Joe é o único lugar onde as luzes se sobressaem à escuridão predominante em outros cenários).
Cena do filme NinfomaníacaA frieza da jovem amante ao se ver como pivô de uma ruína familiar em uma das poucas cenas em que é possível arrancar risos da plateia é o contraste mais claro entre a Claire, de Melancolia, e a Joe, de Ninfomaníaca: uma delas busca a manutenção do valor familiar e se angustia; a outra, não menos livre de angústia, sente apenas tédio.
Ao ouvir o relato da personagem, Seligman cria relações entre a ação descrita e a ordem imperceptível da natureza humana. Relaciona os nomes dos homens da vida de Joe a jogos matemáticos, como se recriasse uma linguagem de signos, significados e significantes. Ora fala da ninfa, a etapa inicial de um inseto. Ora fala da ordem da pesca e da forma como se atrai a presa. Ora fala da polifonia de Bach. Ora, dos números de Fibonacci. Ao reordenar o caos narrativo, o anfitrião faz as vezes da plateia: tudo o que os espectadores querem é saber por quê. Por que Joe age daquela maneira? Qual trauma na infância criou base para a sua suposta insensibilidade? Como se tornou tão fria? Qual o problema com seus pais? Que tipo de violência sofreu?
A diferença em relação ao mundo, como ela mesma argumenta, é que ela queria algo mais do pôr-do-solPúblico e personagens são levados a uma percepção inicial: Joe tem um problema, está doente, sofre de uma mania e fatalmente será surrada (por ela, pelo mundo, pela culpa? Não se sabe). Ao menos nesta primeira parte não é possível saber se o diretor faz coro ou uma paródia dessa busca com lupa sobre como começa e onde acaba a suposta insensatez da personagem.
O nó é que Joe se apresenta como alguém normal. A diferença em relação ao mundo, como ela mesma argumenta, é que ela queria algo mais do pôr-do-sol e não se contentava com as cores ordinárias do céu ao fim do dia. Ela pedia intensidade – e paga um preço por identificar obviedades, como uma vaga de estacionamento ou uma falha mecânica em uma moto, onde as pessoas de sua vida veem apenas confusão.
O contraste entre a personagem apegada aos padrões sociais e outra desapegada deles na sequência Melancolia-Ninfomaníaca é um dos pontos para situar o filme na obra do cineasta. Mas não o único. Outra forma é coloca-lo na sequência de filmes-tabus lançados desde o ano passado. Juntos, Azul é a Cor Mais Quente, de Abdellatif Kechiche, Jovem e Bela, de François Ozon, Um Estranho no Lago, de Alain Guiraudie, e Tatuagem, de Hilton Lacerda, provocaram o maior êxodo de espectadores das salas de cinema da história recente. Muitos deixaram as poltronas com ar de indignação: não suportaram nem as cenas de sexo homoerótico nem a decisão de Isabelle, a jovem e bela Marine Vacth do filme de Ozon, de se prostituir sem precisar do dinheiro (poderia haver transgressão maior em um mundo de liberdades supostamente autorizadas e/ou incentivadas no ambiente familiar?).
Cartaz de lançamento de Ninfomaníaca
Nada deveria causar mais choque do que o choque de um espectador diante de uma cena de sexo. Em 2011, Steve McQueen causou polêmica ao retratar a rotina de um viciado em sexo em Shame. O nome (traduzido) do filme era quase uma sentença condenatória: vergonha. Von Trier vai além: coloca em ação uma mulher para falar do mesmo vício. Com Melancolia, ele pica ao meio a convenção do casamento, pintado como uma cerimônia de pompa anacrônica na qual amar era recomendável, mas não fundamental.
Em “Ninfomaníaca”, ele aborda o descarte do afeto nas relações sexuais e declara guerra ao que se poderia chamar de “ditadura do amor”. É um vespeiro com potencial explosivo: o casamento sem amor é tolerado, mas o sexo sem amor entre desconhecidos é ofensivo e abjeto. O diretor parece dizer: a necessidade de amar é também uma imposição, e nem todos estão dispostos a aceita-la.
No caso de Joe, a tendência parece clara, mas o preço é alto demais. Daí as menções constantes à culpa e à dor.
No filme de Hilton Lacerda, que narra a relação homoafetiva entre um jovem soldado e um artista em meio à ditadura brasileira, há uma espécie de profecia que soa como zombaria diante da frieza nórdica encarnada (parodiada?) nos recém-lançados filmes-tabus europeus: “No futuro, o amor e a liberdade serão como num filme”. Em uma ditadura, as expressões e as liberdades sexuais são quase uma rebelião política (a misoginia, não duvidem, cria cidadãos dóceis, conformados, produtivos e obedientes). Os tempos de Marco Feliciano, cura gay, sexismo nas redes e revenge porn parecem deixar claro quem venceu a queda-de-braço.
Lacerda, obviamente, se referia a outro futuro. Não por acaso, a cena inicial de seu Tatuagem é uma janela aberta pela manhã e um convite a um banho de mar. Ali, como no leilão do corpo da Suely de Karïm Ainouz, a orgia sonhada pela Verônica de Marcelo Gomes, ou o lirismo dos bêbados de Zizo, Pazinho, Eneida e Vanessa de Cláudio Assis, o sol queima e o sangue ferve. Pois há jeitos e jeitos de se falar sobre desejos, amores, liberdades e suas dores – desconfia-se que Lars von Trier jamais tenha pisado em Recife.
Ao menos nas telas, as vontades, dúvidas e desejos parecem mais bem resolvidas por aqui – ninguém parece aceitar tão facilmente o auto-sofrimento por querer abraçar o mundo, ainda que as cenas causem desconforto na suposta decência da plateia. (Em tempo: não é outro o drama – a impossibilidade de amar ou ver sentido no amor além do corpo – da personagem de Hermila Guedes em Era Uma Vez Eu, Verônica, de Marcelo Gomes; a diferença é que este não precisou surrá-la por isso).
No futuro, quando for olhado em perspectiva a partir do segundo filme ainda inédito, saberemos se este cinema encabeçado por Von Trier servirá também como arma de combate ou se reforçará o ambiente lúgubre da realidade que pretende retratar. Quando a polêmica é um fim em si, e se confunde com a moral que visa escancarar, o risco é a realidade (moralista, cínica e covarde) ganhar na tela uma estética à altura: a estética da culpa.
* O filme entra em cartaz em 10 de janeiro em São Paulo, Granja Viana, Alphaville, Sorocaba, Campinas, Rio de Janeiro, Brasília, Goiânia, Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, João Pessoa, Maceió, Fortaleza, Recife e Salvador.
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