Cultura

Nem santa nem mito. Só atleta

No Twitter, a judoca Rafaela Silva mostrou que tem sangue na veia. E respondeu a quem agora se comporta como um consumidor lesado por ‘bancar’ o Bolsa Atleta

A judoca Rafaela Silva, que falhou e se tornou sujeito e objeto da fúria. Foto: Marcio Rodrigues / Fotocom.net
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Na Festa da Menina Morta, o belo filme de estreia como diretor de Matheus Nachtergaele, Daniel de Oliveira interpreta um santo de milagres duvidosos. Tudo começa quando, ainda criança, o Santinho tem uma premonição sobre o paradeiro de uma menina desaparecida em seu povoado no Amazonas; dela, porém, só visualiza onde estavam os trapos da roupa, que logo virariam objetos sagrados apesar da tragédia não evitada. Foi o suficiente para alimentar durante anos um mito de alicerces questionáveis. Afinal, o santo estava vivo e a beneficiada pelo “milagre” estava morta. Pouco importava. O santo era apenas uma projeção; por viver recluso, jamais deu pistas à população devota de que era humano, pecador e vacilante. Entre ele e a devoção, havia a fé, e esta não exige só milagres, mas a ocultação de qualquer fraqueza humana.

É assim mais ou menos como vejo a relação entre ídolo e torcida no esporte. Para se destacar, o ídolo precisa basicamente de duas matérias-primas além do talento: a fé das arquibancadas e a lenda em seu entorno. Para ele, anos de treino, dedicação e reclusão só terão efeito se forem coroados por um milagre reconhecido: o gol no último instante, o salto extraordinário, a braçada no último fôlego, o golpe certo na hora certa.

Numa Olimpíada, a medalha no peito e o hino nacional ao fundo são quase cerimônias de beatificação automática. Diante da expectativa sobre ele, o atleta se difere de um trabalhador braçal ou de um artista – que arrancam satisfação ou aplauso da plateia sem precisar atropelar adversários diretos. O atleta, quando vai para a disputa, “é” o seu país nas Olimpíadas, na Libertadores da América, na Copa do Mundo ou no Mundial de Cuspe a Distância.

Quando ele cai de cara no chão ou aplica o golpe irregular, ele não é só desclassificado: ele leva ao chão todo o peso de um público sedento por dar corpo ao mito. E mito, como um santo da igreja, não perde. Não chora. Não peca. Não questiona. Simplesmente aceita a missão e triunfa. O mito esportivo é aquilo que as pessoas querem ver. É a projeção de uma experiência extraordinária outorgada por pessoas ordinárias que o assistem de casa com suas vidas tolas, mesquinhas e sem grandes emoções longe do sofá.

Foi assim sempre e assim sempre será. Mas em Londres 2012 uma novidade tem chamado a atenção. Estes são os primeiros Jogos após a explosão das redes sociais. Com elas, o eco de derrotas ou vitórias ganha uma proporção assombrosa e vida própria. E levam a relação do esportista com seu público a um outro patamar. Se antes, de dentro do estádio, o atleta podia ouvir as vaias sem distinguir o que cada um expressava na multidão, agora a bronca o persegue. Antes as vaias eram encerradas tão logo chegava em casa – ou com as repercussões dos jornais pela manhã; hoje, quando chega em casa e se conecta, ele praticamente consegue materializar a ofensa e direcionar o revide. A vaia tem foto, endereço e hashtag. É quando toda a distância necessária para transformar feitos em mitos cai por terra.

Veja o caso de Rafaela Silva, a judoca eliminada por aplicar um golpe irregular quando tinha tudo para vencer a húngara Hedvig Karakas. Poucos a conheciam até então, algo não muito diferente da colega Sarah Menezes, a judoca que de um dia para o outro virou “símbolo da superação nacional”. Rafaela tinha tudo para seguir a mesma trilha, mas, no meio do caminho entre a atleta e o mito, ela tropeçou. E, ao tropeçar, provocou uma fúria que só as redes sociais conseguiram dar vazão – e que rede de tevê alguma conseguiria filtrar. Ao ver a “nossa representante” falhar, o torcedor esporádico descartou o potencial de devoção e passou a se comportar como um cliente que encontrou um fio de cabelo na sua lata de coca-cola. Um cliente que vai, pede o dinheiro de volta e monta um escarcéu para provar que foi injustiçado.

Essa relação cliente-empregado-atleta pode não ser nova, mas tem sido escancarada até aqui a cada tropeço de atleta brasileira nas Olimpíadas de 2012. É como se a derrota lesasse o contribuinte que paga impostos para fomentar a estrutura esportiva nacional. O mesmo sujeito que se queixa por “bancar” o Bolsa Família com seu trabalho agora anda na bronca com mecanismos como o Bolsa Atleta. Basta entrar na internet para testemunhar. O que leva à conclusão: a lógica mercadológica que esvazia o discurso político também contamina o esporte. Talvez tenha sido sempre assim, mas só com as redes sociais essa rebelião ganhou de fato um canal de expressão.

E por canal de expressão entenda-se também um canal de revide. Poucos devem saber o que fez e o que falou Barbosa, o goleiro da seleção na final da Copa de 50, após a derrota para o Uruguai em pleno Maracanã. Ele seria facilmente trolado na internet se a disputa fosse hoje, e provavelmente responderia um a um em sua própria defesa. Foi o que fez Rafaela Silva, que distribuiu mais golpes aos agressores em sua conta de Twitter do que provavelmente em toda a sua vida no tatame. (Vale lembrar que na rede alguns golpes também são proibidos, como o caso da saltadora grega que publicou manifestações racistas em sua conta no Twitter e foi cortada dos Jogos, num exemplo de que a vida em rede está mais próxima da vida real do que imaginamos).

O episódio com a judoca Rafaela Silva foi simbólico desta sintonia. Ela não precisou de interlocutores, assessores de imprensa nem da pergunta certa na hora certa para se defender: foi à rede e mostrou que não quer ser mito nem santa nem “Brasil nas Olimpíadas”. Quer mostrar apenas que tem sangue na veia, vergonha na cara e não aceita ofensas gratuitas (entre elas manifestações claras de racismo). Ao reagir como reagiu no Twitter, ela ensinou um País inteiro que nenhuma porrada chega sem dor – nem no tatame nem na vida. E que respeito vale mais que qualquer devoção.

Na Festa da Menina Morta, o belo filme de estreia como diretor de Matheus Nachtergaele, Daniel de Oliveira interpreta um santo de milagres duvidosos. Tudo começa quando, ainda criança, o Santinho tem uma premonição sobre o paradeiro de uma menina desaparecida em seu povoado no Amazonas; dela, porém, só visualiza onde estavam os trapos da roupa, que logo virariam objetos sagrados apesar da tragédia não evitada. Foi o suficiente para alimentar durante anos um mito de alicerces questionáveis. Afinal, o santo estava vivo e a beneficiada pelo “milagre” estava morta. Pouco importava. O santo era apenas uma projeção; por viver recluso, jamais deu pistas à população devota de que era humano, pecador e vacilante. Entre ele e a devoção, havia a fé, e esta não exige só milagres, mas a ocultação de qualquer fraqueza humana.

É assim mais ou menos como vejo a relação entre ídolo e torcida no esporte. Para se destacar, o ídolo precisa basicamente de duas matérias-primas além do talento: a fé das arquibancadas e a lenda em seu entorno. Para ele, anos de treino, dedicação e reclusão só terão efeito se forem coroados por um milagre reconhecido: o gol no último instante, o salto extraordinário, a braçada no último fôlego, o golpe certo na hora certa.

Numa Olimpíada, a medalha no peito e o hino nacional ao fundo são quase cerimônias de beatificação automática. Diante da expectativa sobre ele, o atleta se difere de um trabalhador braçal ou de um artista – que arrancam satisfação ou aplauso da plateia sem precisar atropelar adversários diretos. O atleta, quando vai para a disputa, “é” o seu país nas Olimpíadas, na Libertadores da América, na Copa do Mundo ou no Mundial de Cuspe a Distância.

Quando ele cai de cara no chão ou aplica o golpe irregular, ele não é só desclassificado: ele leva ao chão todo o peso de um público sedento por dar corpo ao mito. E mito, como um santo da igreja, não perde. Não chora. Não peca. Não questiona. Simplesmente aceita a missão e triunfa. O mito esportivo é aquilo que as pessoas querem ver. É a projeção de uma experiência extraordinária outorgada por pessoas ordinárias que o assistem de casa com suas vidas tolas, mesquinhas e sem grandes emoções longe do sofá.

Foi assim sempre e assim sempre será. Mas em Londres 2012 uma novidade tem chamado a atenção. Estes são os primeiros Jogos após a explosão das redes sociais. Com elas, o eco de derrotas ou vitórias ganha uma proporção assombrosa e vida própria. E levam a relação do esportista com seu público a um outro patamar. Se antes, de dentro do estádio, o atleta podia ouvir as vaias sem distinguir o que cada um expressava na multidão, agora a bronca o persegue. Antes as vaias eram encerradas tão logo chegava em casa – ou com as repercussões dos jornais pela manhã; hoje, quando chega em casa e se conecta, ele praticamente consegue materializar a ofensa e direcionar o revide. A vaia tem foto, endereço e hashtag. É quando toda a distância necessária para transformar feitos em mitos cai por terra.

Veja o caso de Rafaela Silva, a judoca eliminada por aplicar um golpe irregular quando tinha tudo para vencer a húngara Hedvig Karakas. Poucos a conheciam até então, algo não muito diferente da colega Sarah Menezes, a judoca que de um dia para o outro virou “símbolo da superação nacional”. Rafaela tinha tudo para seguir a mesma trilha, mas, no meio do caminho entre a atleta e o mito, ela tropeçou. E, ao tropeçar, provocou uma fúria que só as redes sociais conseguiram dar vazão – e que rede de tevê alguma conseguiria filtrar. Ao ver a “nossa representante” falhar, o torcedor esporádico descartou o potencial de devoção e passou a se comportar como um cliente que encontrou um fio de cabelo na sua lata de coca-cola. Um cliente que vai, pede o dinheiro de volta e monta um escarcéu para provar que foi injustiçado.

Essa relação cliente-empregado-atleta pode não ser nova, mas tem sido escancarada até aqui a cada tropeço de atleta brasileira nas Olimpíadas de 2012. É como se a derrota lesasse o contribuinte que paga impostos para fomentar a estrutura esportiva nacional. O mesmo sujeito que se queixa por “bancar” o Bolsa Família com seu trabalho agora anda na bronca com mecanismos como o Bolsa Atleta. Basta entrar na internet para testemunhar. O que leva à conclusão: a lógica mercadológica que esvazia o discurso político também contamina o esporte. Talvez tenha sido sempre assim, mas só com as redes sociais essa rebelião ganhou de fato um canal de expressão.

E por canal de expressão entenda-se também um canal de revide. Poucos devem saber o que fez e o que falou Barbosa, o goleiro da seleção na final da Copa de 50, após a derrota para o Uruguai em pleno Maracanã. Ele seria facilmente trolado na internet se a disputa fosse hoje, e provavelmente responderia um a um em sua própria defesa. Foi o que fez Rafaela Silva, que distribuiu mais golpes aos agressores em sua conta de Twitter do que provavelmente em toda a sua vida no tatame. (Vale lembrar que na rede alguns golpes também são proibidos, como o caso da saltadora grega que publicou manifestações racistas em sua conta no Twitter e foi cortada dos Jogos, num exemplo de que a vida em rede está mais próxima da vida real do que imaginamos).

O episódio com a judoca Rafaela Silva foi simbólico desta sintonia. Ela não precisou de interlocutores, assessores de imprensa nem da pergunta certa na hora certa para se defender: foi à rede e mostrou que não quer ser mito nem santa nem “Brasil nas Olimpíadas”. Quer mostrar apenas que tem sangue na veia, vergonha na cara e não aceita ofensas gratuitas (entre elas manifestações claras de racismo). Ao reagir como reagiu no Twitter, ela ensinou um País inteiro que nenhuma porrada chega sem dor – nem no tatame nem na vida. E que respeito vale mais que qualquer devoção.

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