Cultura

Nelson Rodrigues explica o futebol em 2015

Em hipotética entrevista, o autor de “A Pátria de Chuteiras” criticaria os dirigentes, a submissão ao futebol europeu e a desorientação dos ídolos

Trechos do filme "Fragmentos de dois escritores", com Nelson Rodrigues
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Existem duas alternativas quando não se entende nada ou quase nada do momento atual. Uma, pouco plausível, é mandar parar, descer e começar tudo de novo (de preferência a pé, para dar tempo de pensar). Outra é voltar aos clássicos. Shakespeare, Dante, Cervantes e Machado de Assis dizem mais sobre nossos conflitos contemporâneos do que qualquer nativo digital. O futebol não é um mundo à parte, e muito antes dos 7 a 1 ele já se instalava no pantanoso terreno entre a incredulidade e o realismo fantástico. O resultado é um impasse, no atacado, e algumas prisões, no varejo.

Para entender o momento, convocamos Nelson Rodrigues, o cronista que leu, releu e registrou o Brasil por meio do futebol e compreendeu, antes de todos, o conflito inevitável de nossa grandiosidade e nossa miséria.

Nesta entrevista*, o cronista aponta a metralhadora contra os dirigentes do futebol, a desarticulação dos clubes, a pane criativa dentro de campo, a submissão ao modelo europeu, os críticos da seleção, a desorientação dos nossos ídolos e a contradição dos manifestantes que pedem um país melhor com o símbolo da corrupção no peito. “Já descobrimos o Brasil e não todo o Brasil. Ainda há muito Brasil para descobrir. Este país é uma descoberta contínua e deslumbrante”.

Confira: 

Como o senhor tem acompanhado as notícias sobre as prisões na Fifa?

Nelson Rodrigues – Quem não estiver sofrendo, neste momento, é um mau caráter.

Por que, apesar das suspeitas levantadas desde 2010, os escândalos na Fifa foram praticamente ignorados pela imprensa brasileira? A Copa de 2014 poderia ter tido desfecho diferente…

NR – No primeiro momento, ninguém soube o que pensar, o que dizer. Não tínhamos meios e modos para um julgamento imediato. E ninguém viu o óbvio.

Isso é dito desde a gestão João Havelange, mas pouco ou nada mudou no comando da entidade. É possível dizer que esse escândalo tem DNA brasileiro?

NR – Amigos, vamos reconhecer com sóbria e exata autocrítica: — não há, presentemente, no mundo, uma figura humana tão complexa, tão rica, tão potencializada como o brasileiro. Eis o óbvio, que nem todos enxergam: — o maior homem da época é o do Brasil.

O sr. até hoje não parece ter engolido a forma com que a Inglaterra venceu a Copa de 66. Não é uma ironia que o escândalo atual tenha acontecido após o país perder a disputa para sediar a Copa? Há um pano geopolítico por trás dessa devassa?

NR – Só os subdesenvolvidos têm escrúpulos (risos). O inglês é um grande povo. Na guerra, salvou o mundo com a sua resistência. Mas em 66 a Inglaterra foi de um descaro empolgante. Manipulou juízes, baixou o pau, fez horrores e ganhou. Portanto, com suas qualidades, o inglês salvou o mundo; com os seus defeitos, ganhou a taça.

O David Cameron celebrou as prisões…

NR – A História informa que o cinismo é próprio dos grandes povos. A vitória inglesa (em 1966) foi, assim, um crime quase perfeito. Digo “quase”, porque teve o defeito do descaro. A Copa da Inglaterra foi roubada duas vezes. Duvidar ou sofismar com o segundo roubo é o mesmo que duvidar do primeiro.

O que caracteriza este segundo roubo?

NR – Eu não vou citar tudo o que caracteriza o crime como tal. Por que demonstrar o que é de uma evidência estarrecedora? O que se faz, na Europa, é uma imitação de vida. Vocês pensam que há algum disfarce, ou escrúpulo, ou mistério? Absolutamente. Tudo se fez e se faz com uma premeditação deslavada e na cara das vítimas.

Hoje há quem atribua as prisões a um complô do FBI.

NR – O mal-amado sente-se hostilizado até pelas paredes, pelos edifícios, pela paisagem. E ele, não raro, começou a sofrer de mania de perseguição.

Na sua opinião, os desdobramentos vão fazer estragos por aqui?

NR – Já descobrimos o Brasil e não todo o Brasil. Ainda há muito Brasil para descobrir. Não há de ser num relance, num vago e distraído olhar, que vamos sentir todo o Brasil. Este país é uma descoberta contínua e deslumbrante.

O atual presidente da CBF disse não ter motivos para renunciar, mesmo depois da prisão de seu antecessor.

NR – Diante de um caixão, o sujeito faz sempre esta reflexão egoísta e estimulante: “Ainda bem que eu não sou o defunto.” Leio que houve ontem, ou anteontem, uma reunião de colegas. O normal, o correto, o justo é que os presentes começassem a berrar, numa unanimidade compacta e trovejante: — “Ladrões! Ladrões!”

Esse defunto era herdeiro de Ricardo Teixeira, que era herdeiro de João Havelange, que é inclusive nome de estádio, de campeonato….

NR – Ainda hoje me pergunto que méritos especiais e deslumbrantes teria esse cadáver para merecer tamanha apoteose fúnebre. Não importam as razões. O fato em si já constitui um escândalo bem singular.

Acha que o povo irá às ruas pela moralização do futebol?

NR – Amigos, o mínimo que se pode esperar do subdesenvolvido é o protesto. Ele tem de espernear, tem de subir pelas paredes, tem de se pendurar no lustre. Sua dignidade depende de sua indignação. Ou ele, na sua ira, dá arrancos de cachorro atropelado, ou temos de chorar pela sua alma. E, vamos e venhamos, nada mais abjeto do que o subdesenvolvimento consentido, confesso e até radiante.

Mas o brasileiro está indo para as ruas…com o símbolo na CBF no peito, mas está.

NR – Não havia, ali, um único e escasso preto. E nem operário, nem favelado, e nem torcedor do Flamengo, e nem barnabé, e nem pé-rapado, nem cabeça de bagre. Eram os filhos da grande burguesia, os pais da grande burguesia, as mães da grande burguesia. Portanto, as elites. E sabem por que e para que se reunia tanta gente? Para não falar no Brasil, em hipótese nenhuma. O Brasil foi o nome e foi o assunto riscado. Falou-se em China, falou-se em Rússia, ou em Cuba, ou no Vietnã. Mas não houve uma palavra, nem por acaso, nem por distração, sobre o Brasil. Picharam o nosso Municipal com um nome único: — Cuba. Do Brasil, nada? Nada. Simplesmente, o Brasil não existe para as nossas elites. “Se até o futebol brasileiro não presta, vamos fechar o Brasil.” Mas pergunto: — que fazer contra a burrice? Desconfio que não há reação possível.

Acha que os dirigentes dos clubes têm força para pressionar por mudanças?

NR – Os clubes dos campeões, que deviam estar alarmados, não estão alarmados coisa nenhuma. Pelo contrário: — do lábio pende-lhes a baba elástica e bovina da cobiça.

O que é preciso para mudar de fato a estrutura do futebol?

NR – As profissões e as pessoas dependem ou, antes, dependem sobretudo de valores gratuitos. Procurarei esclarecer: — a vergonha de uma senhora honesta. É um bem material, negociável, a vergonha de uma senhora honesta? Não, evidentemente. E, no entanto, por esse valor gratuito, ela estará disposta a morrer e matar. E assim o seu marido e os seus filhos. Não ocorreria a ninguém aconselhar a uma mulher casada que aceite uma boa oferta, em dinheiro, do primeiro pilantra. Ela estaria disposta a vender as joias, os talheres, as cadeiras, os lençóis, o diabo a quatro. Menos os seus valores incomerciáveis

O sr. fala com base no futebol do passado. Hoje o futebol se profissionalizou. Tem muito dinheiro envolvido…

NR – O futebol profissional exige dinheiro, mas não só dinheiro. Ele implica algo mais, ou seja: implica os tais valores gratuitos que conferem a um jogo, a uma pelada uma dimensão especialíssima. Um match representa algo mais que pontapés. Participam da luta dois clubes e todos os seus bens morais, afetivos, líricos, históricos.

Isso é suficiente para segura os craques no Brasil, por exemplo?

NR – Ninguém vive só de milhões materiais. E os milhões subjetivos? Só a língua da terra vale um milhão bem-contado. A venda de um campeão do mundo, qualquer que seja o seu preço, implica num prejuízo real e irrecuperável. E se os nossos clubes fossem menos obtusos, já teriam percebido que deviam chutar os milhões que o mundo oferecer pelos nossos supercraques.

Acha que o Ronaldo, que agora pede mudanças no futebol, pode liderar esse movimento? Não seria uma contradição para quem parecia tão próximo da cúpula da CBF? Ele pode ficar com fama de vira-casaca?

NR – Disse Rilke que a glória, o que chamamos glória, é a soma de mal-entendidos em torno de um homem e de uma obra. E não só a glória. Também a desonra pode ser outra soma de mal-entendidos. Qualquer um de nós já amou errado, já odiou errado.

O que achou do apoio público de Pelé a Joseph Blatter?

NR – É, de fato, um menino, um garoto. Se quisesse entrar num filme de Brigitte Bardot, seria barrado, seria enxotado. Mas reparem: — é um gênio indubitável. Digo e repito: — gênio. Pelé podia virar-se para Miguel Ângelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los, com íntima efusão: — “Como vai, colega?” De fato, assim como Miguel Ângelo é o Pelé da pintura, da escultura, Pelé é o Miguel Ângelo da bola. Um e outro podem achar graça de nós, medíocres, que não somos gênios de coisa nenhuma, nem de cuspe a distância. E que coisa confortável para nós, brasileiros, saber que temos um patrício assim genial e assim garoto!

O sr. está falando de Pelé…O Edson Arantes disse recentemente que combater o racismo no Brasil era bobagem…

NR – A tragédia do subdesenvolvimento não é só a miséria ou a fome, ou as criancinhas apodrecendo. Não. Talvez seja um certo comportamento espiritual. O sujeito é roubado, ofendido, humilhado e não se reconhece nem o direito de ser vítima.

Ainda acha que a vitória em 58 exorcizou nosso complexo de vira-lata? Ou foi apenas uma trégua entre uma Copa e outra?

NR – O brasileiro fazia-me lembrar aquele personagem de Dickens que vivia batendo no peito: — “Eu sou humilde! Eu sou o sujeito mais humilde do mundo!” Ele vivia desfraldando essa humildade e a esfregando na cara de todo mundo. E se alguém punha em dúvida a humildade, eis o Fulano esbravejante e querendo partir caras. Assim era o brasileiro. Servil com a namorada, com a mulher, com os credores. Mal comparando, um são Francisco de Assis de camisola e alpercatas

Hoje o que se diz é que precisamos nos espelhar no futebol europeu para recuperar a força…

NR – Os “entendidos” tudo fizeram para acabar com o nosso craque. Queriam que nós imitássemos os defeitos europeus. Queriam tirar do nosso futebol toda a magia, toda a beleza, toda a plasticidade, toda a imaginação. Faziam a apologia do futebol feio. Era como se estivessem apresentando o corcunda de Notre Dame como um padrão de graça e eugenia.

Esse futebol ‘feio’ aplicou 7 a 1 no Brasil em sua própria casa.

NR – Ora, o escrete é feito à nossa imagem. E os cronistas reunidos não fizeram outra coisa senão cuspir, como Narciso às avessas, na própria imagem. Negaram a seleção, negaram o jogador, negaram o técnico, negaram o preparador, negaram o médico, negaram tudo. Justo seria que terminassem assim: — “E, agora, com licença, porque vamos urrar no bosque mais próximo!”

Acha que a derrota pode dar razão a esses “entendidos”?

NR – O Brasil estava jogando sem alma, sem paixão. O adversário fez um gol. Nem assim reagimos. Pouco depois, novo gol. Os brasileiros andavam de velocípede e os europeus, a jato. O preparo físico dos europeus era esmagador. Como se não bastasse tudo o mais, ainda descobriu o “entendido”: — o futebol moderno não é bonito, não quer ser bonito e escorraçou o belo e artístico de suas cogitações. Bonito e artístico é o futebol subdesenvolvido de Brasil e outros.

Mas a Alemanha ganhou a Copa sem fazer uma firula…

NR – Desde quando o bonito ganhou a Copa?

Então nosso problema foi salto alto?

NR O que tem sido o brasileiro desde Pero Vaz de Caminha? Vamos confessar a límpida, exata, singela verdade histórica: — o brasileiro é um pau de arara. Vamos imaginar esse pau de arara na beira da estrada. Que faz ele? Lambe uma rapadura. E além de lamber a rapadura? Raspa, com infinito deleite, a sua sarna bíblica. E súbito encosta uma Mercedes branca, diáfana, nupcial. O cronista esportivo, que a dirige, incita o pau de arara: — “Seja humilde, rapaz, seja humilde!” Vocês percebem a monstruosidade? Não basta ao miserável a sarna, nem a rapadura. Ainda lhe acrescentam a humildade. Um escrete é feito pelo povo. E como o povo o fez? Com vaias. Nunca houve na Terra uma seleção tão humilhada e tão ofendida. E, além disso, os autores das vaias ainda pediam humildade. O justo, o correto, o eficaz é que assim incentivássemos a seleção de paus de arara: — “Tudo, menos humildade! Seja arrogante! Erga a cabeça! Suba pelas paredes! Ponha lantejoulas na camisa!”

Acha que o Neymar pode encarnar esse espírito? Na semana passada, ele foi criticado por fazer graça com um adversário…

NR – A multidão precisa destruir os mitos que promove. É uma abjeção falar em humildade no Brasil. Olhem este povo de paus de arara. Ante as riquezas do mundo, cada um de nós é um retirante de Portinari, que lambe a sua rapadura ou coça a sua sarna. A humildade tem sentido para os césares industriais dos Estados Unidos. Já o pau de arara precisa, inversamente, de mania de grandeza.

Teria sido diferente se o Neymar não tivesse sido quebrado contra a Colômbia?

NR – Em futebol, como em tudo o mais, o craque é decisivo. Evidente que os onze são indispensáveis. Antes da primeira botinada, já o craque brasileiro estava estourado. Sei também que o Brasil não teve, jamais, um time. A nossa equipe era o caos. Por outro lado, faltou-nos qualquer organização de jogo, qualquer projeto tático.

O que fazer para a seleção voltar a ser respeitada?

NR – Para a seleção render cem por cento, ou mil por cento, precisa acreditar no Brasil. Essa é a primeira providência. Segunda: — acreditar em si mesmo. E mais: — o time nacional tem que se achar o melhor do mundo.

 

*Todas as declarações de Nelson Rodrigues foram retiradas e reordenadas ipsis litteris a partir do livro “A Pátria de Chuteiras

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