Cultura

Nei Lopes, do Irajá para o mundo

O artista multifacetado, sambista e escritor, celebra a pluralidade da herança africana

Lopes: homenageado pela UFRGS
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Na Travessa Pau Ferro, subúrbio do Irajá, Rio de Janeiro, um menino esperto registra com olhos e ouvidos afiados tudo que está em torno dele. Imagens e sons, ele os absorve e transforma em criação artística: desenhos na areia limpa à frente de sua casa, músicas e pecinhas teatrais ensaiadas no Grêmio Recreativo Pau Ferro, poesias e ensaios escritos na Escola Técnica Visconde de Mauá, onde ingressou em primeiro lugar no concurso, para orgulho do pai semialfabetizado.

Esse menino esperto se torna uma das mais fecundas penas das letras brasileiras, exercendo seu talento em poesia, composição musical, contos, romances, peças teatrais e musicais, pesquisas históricas e filológicas das quais brotam dicionários e enciclopédias, e seu especial brilho na performance, seja como cantor, debatedor ou palestrante.

Tesouro vivo da cultura brasileira, Nei Lopes recebeu no último dia 30 o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, instituição que acaba de outorgar o mesmo título ao igualmente multifacetado escritor nigeriano Wole Soyinka, primeiro africano a receber o Nobel da Literatura.

Como dizem os ancestrais, nada é por acaso. Juntar esses dois nomes rende um exercício delicioso de imersão no mundo negro que a Bienal do Mercosul propõe explorar ao abordar o Triângulo Atlântico com ênfase na arte e cultura de matriz africana.

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Nei Lopes e Wole Soyinka emergem de um mesmo berço, o da cultura nagô ou ioruba, de cuja sofisticação e complexidade tivemos uma pequena amostra no discurso do nigeriano, proferida no Theatro São Pedro ao encerrar a Feira do Livro de Porto Alegre.

Os orixás constituem, para ambos, os alicerces míticos que sustentam um universo de infinitas possibilidades criativas. Ogum rege os passos literários e ativistas de Soyinka. Obatalá, Logun Edé, Oxum e Oxossi fazem a cabeça de Nei, que cumpre etapas do longo e denso aprendizado da tradição de Ifá-Orunmilá.

Os dois têm em comum, entretanto, amplo conhecimento do âmbito maior dos povos negros, cuja identidade, acima das divisões étnicas, existe em diversos léxicos africanos: abibiman (ki-swahili), enia dudu (ioruba), meedidzii (ga), baike mutane (haussa).

Assim como Soyinka rechaça a “consciência salina” que confinaria o pertencimento africano ao território continental, Nei Lopes celebra a pluralidade da herança africana nitidamente vivida na diáspora e no Brasil: seus dicionários e enciclopédias da diáspora e da África solidamente a afirmam. Em seu livro Bantos, Malês e Identidade Negra (1988), rompeu com o equívoco antropológico segundo o qual os negros vindos da África meridional teriam sido culturalmente “menos avançados” que os chamados “sudaneses” da África Ocidental. Mas isto é outra história.

O fato é que Wole Soyinka e Nei Lopes mergulham na riqueza da pluralidade dessa herança africana que guarda uma matriz ampla, coerente, de qualidades e princípios compartilhados entre suas diversas expressões.

Uma dessas qualidades é um profundo respeito e reverência ao ambiente. Os orixás são as próprias forças da natureza, ao mesmo tempo que representam e interrogam ponderações éticas próprias à ordem do convívio humano e da relação do ser humano com o planeta e o universo.

Tive a honra de conviver com Nei Lopes quando o Rio de Janeiro recebeu a Cúpula das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, o Rio-92.

Realizamos o Colóquio Dunia Ossaim, cujo título evoca a unicidade de distintas matrizes africanas. Dunia significa planeta terra em ki-swahili. Ossaim a divindade das folhas, da cura pela natureza, em ioruba. Com Abdias Nascimento e Joel Rufino, recebemos o Mwalimu Julius Nyerere, ex-presidente da Tanzânia e líder da Comissão Sul-Sul.

Nei concebeu naquela época o projeto Insaba, sabedoria da floresta, que propunha criar uma grande horta em terreno da Baixada Fluminense para a pesquisa e divulgação do rico conhecimento fitoterápico da tradição afro-brasileira e indígena. Duas décadas depois, Wole Soyinka viria ao Brasil participar da tenda de matriz africana na Rio +20, novamente sublinhando esse aspecto ambientalista da tradição africana.

Outro valor dessa tradição é a reverência aos ancestrais. A obra de Nei Lopes, assim como a de Soyinka, incorpora-o e o faz viver vibrando. Traz a vida d’outrora com personagens palpáveis. Recria o Rio de Janeiro em mínimos detalhes históricos e geográficos. Enumerar exemplos seria matéria de tese acadêmica. Mas nem todas as criações de Nei chegaram às livrarias. Tive o privilégio de assistir no Centro Cultural José Bonifácio, na década dos 1990, a peça musical “Clementina”, brinde do Nei para aquele equipamento municipal voltado à cultura negra.

Foi a primeira vez que vi em cena, desenvolvido no texto de forma instigante e bem-humorada, a figura de Deus corporificada como mulher negra. Dez anos depois, vi cena semelhante em cinema, e hoje o protagonismo das mulheres negras a coloca com alguma frequência. Mas naquele momento foi uma das deliciosas e inéditas surpresas com a qual a ousadia criativa de Nei Lopes volta sempre a nos brindar.

Parabéns à UFRGS, que além de outorgar-lhe o título, abre seu Salão de Atos nesta sexta-feira 1o para a aula musicada “A vez e a voz de Nei Lopes”, promovida pelo Departamento de Educação e Desenvolvimento Social da Pró-Reitoria de Extensão, com apoio do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS.

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