Cultura

À primeira vista, os influenciadores são as celebridades de hoje. Será mesmo?

Nas redes sociais, a interatividade não é suficiente

Imagem: Pilar Velloso
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O termo influenciador é, no mínimo, esdrúxulo. Mas é também expressivo ao “falar” da contemporaneidade digital. É surpreendente a rapidez com a qual foi incorporado ao repertório linguístico. Tornou-se tão natural que esquecemos ser ele fruto de transformações recentes. Dizem os estudiosos que, desde 2015, os blogueiros e os vlogueiros (produtores de vídeos) são percebidos em razão do impacto que exercem junto ao público receptor. Os influenciadores tornam-se assim pequenas celebridades.

Mas o que eles significam? O contraponto com duas outras categorias, intelectual e mediador simbólico, pode ser esclarecedor. Afinal, influenciadores, intelectuais e mediadores simbólicos operam na esfera pública. Sei que a noção de intelectual é polissêmica, mas, para encaminhar meu raciocínio, sublinho um aspecto: os intelectuais são aqueles que dão sentido ao mundo; elaboram um tipo de explicação que se constitui como uma totalidade (por exemplo, os intelectuais orgânicos dos partidos políticos ou os teólogos).

Os mediadores simbólicos possuem outra qualidade: são intermediários entre diferentes campos. A rigor não são, como os intelectuais, elaboradores de uma “ideologia”, ou seja, de uma totalidade explicativa. Seu papel é mediar o que já existe para um espectro mais amplo de ­pessoas. É o que fazem, por exemplo, as revistas de design ao veicular um tipo de gosto artístico. Os mediadores simbólicos atuam como elementos de ligação entre uma instância legítima de consagração e aqueles que dela não fazem parte, o público.

Alcance e engajamento. Anita tem 59,3 milhões de seguidores no Instagram. O canal de Felipe Neto no YouTube tem 43,7 milhões de inscritos – Imagem: Redes sociais e Fabio Motta

Essas duas categorias existem sem nenhuma menção à internet. Intelectuais e mediadores simbólicos independem do meio técnico utilizado. As “mensagens” que difundem podem se exprimir através de livros, revistas, vídeos, palestras e, inclusive, da internet. Mas a natureza da atividade que exercem escapa ao meio de comunicação que privilegiam. Os influenciadores, por outro lado, são definidos pela técnica e pelo ambiente no qual se inserem: o ecossistema digital. São prisioneiros da virtualidade que lhes permite existir.

Outro aspecto se revela quando os contrastamos com os intelectuais. Tinha sublinhado o fato de eles elaborarem um discurso cuja intenção era abarcar o mundo enquanto totalidade. Já os influenciadores atuam em segmentos da vida social, são especialistas de um mundo fragmentado: humor, religião, música, moda, esporte etc.

As instâncias de premiação dos “melhores influenciadores” (do tipo ­Influency.me) traduzem bem este processo de especialização. Os laureados são agrupados por atividades: arquitetura e decoração, ativismo, cabelo, estilo de vida, fitness, família, gastronomia, maquiagem, viagem e turismo, pets.

Instagram. Karen Machini mostra sua maquiagem. Matheus Silt trata de decoração. Lena Mahfouf fala de moda – Imagem: Redes sociais e Célio Olizar

Isso tem implicações. A noção de influência sempre foi marcada por um certo reducionismo. Isso ficava claro quando se discutiam os meios de comunicação de massa. Que influência teriam o rádio ou a tevê sobre o público? A pergunta fazia parte de um conjunto de estudos que “reduziam” os meios ao impacto sobre suas audiências. No caso da internet, temos um afunilamento ainda maior: influenciador é um substantivo, denomina um personagem definido pela instrumentalidade de sua ação.

Ele atua em um espaço segmentado em função de um público também segmentado. A ação visa um resultado específico. Os influenciadores são marcados pela utilidade do que professam e vivem uma relação de causa e efeito da qual não podem se furtar. Por isso, a questão da audiência é importante. Seria insensato circunscrever as categorias intelectual ou mediador simbólico a tal dimensão. A verdade das ideologias repousa em sua consistência em explicar o mundo. Pode-se dizer o mesmo dos mediadores: importa a intermediação com o público mais amplo.

É sempre possível discutir o alcance dos intelectuais ou mediadores, mas ­suas identidades não se confinam à noção de influência ou audiência. No caso dos influenciadores, isso é decisivo. Quanto mais seguidores, maior a relevância – daí a necessidade da mensuração. Ela é a evidência empírica da verdade digital. Para isso há alguns parâmetros: alcance (número de seguidores), engajamento (tempo de permanência na página e interações) e compartilhamento. Os dados são ordenados em uma escala hierárquica que vai do megainfluenciador (mais de 1 milhão de seguidores) ao microinfluenciador (entre 10 mil e 100 mil).

A visibilidade é um tipo de capital mobilizado em busca de distinção na miríade digital

Não é difícil perceber que existe uma homologia entre o espaço dos influenciadores e o espaço do mercado. Todos sabemos que o mercado se organiza através da segmentação. Por outro lado, a ação de marketing funda-se na ideia de resultado. Os publicitários e os executivos das empresas enfrentam o mesmo dilema: encontrar e cativar o consumidor. Há ainda a obsessão pela mensuração. Medir o tamanho do público-alvo é um imperativo categórico das pesquisas mercadológicas.

Nesse sentido, a aproximação entre influenciadores e mercado nada tem de surpreendente. A internet configura-se assim como um espaço de interação e promoção de produtos. O conceito de monetização é expressivo dessa complementaridade, conferindo valor comercial ao conteúdo veiculado. Nos sites e ­vídeos dos influenciadores, a exposição dos anúncios pode ser “precificada” pelo número de visualizações e likes.

Existe um mercado de opiniões no qual a influência se exerce. Sublinho: utilizo o plural. Tradicionalmente, o debate sobre opinião pública se fazia no singular. Na esfera pública era preciso exprimir a “manifestação da maioria”. Isso legitimaria um conjunto de práticas sociais, fossem elas políticas (o voto) ou morais (ser a favor ou contra o aborto).

A noção de opinião pública refere-se a algo que transcende os grupos específicos, enfatiza aquilo que é comum.

Os influenciadores trabalham dentro de fronteiras restritas. Pode-se assim perguntar: qual o fundamento de sua autoridade? O contraponto com os mediadores simbólicos é novamente interessante. Um programa de televisão sobre gastronomia pressupõe a existência de algo que o antecede: a gastronomia. A autoridade de um chef fundamenta-se num saber historicamente estabelecido. Ela independe de seguidores. O reconhecimento dos influenciadores é de outra natureza: depende de sua posição na rede, medida pela interatividade e visibilidade.

A interatividade é fruto da tecnologia utilizada, há uma valorização das relações pessoais, uma espécie de exasperação do eu. A jovem influenciadora especializada em cabelo ou pets deve veicular o conteúdo de sua intervenção de maneira acessível (intelectuais ou mediadores trabalham com conteúdos menos acessíveis), compartilhável, e, sobretudo, trabalhar dentro de uma abordagem personalizada. Os influenciadores falam para e com as pessoas, veiculam aquilo que “foi feito para elas”.

A subjetividade de cada um conta e a linguagem valoriza a dimensão idiossincrática. A jovem influencer diz que foi à praia, mas voltou mais branca porque usou muito protetor solar, e os seguidores comentam: “Você está maravilhosa, linda, não acham?” O êxito da interação envolve emoção e espontaneidade.

Twitter. Ativa nos posts, Manuela d’Ávila conta com 1,3 milhão de seguidores – Imagem: Redes sociais

Os compêndios de marketing insistem na importância de se construírem laços emocionais com o consumidor, explorando o “engajamento” do outro: “Deixe que eles falem”, “conte uma história”, “seja você mesmo” etc. Mas, nas redes sociais, a interatividade não é suficiente. É preciso que os personagens sejam visíveis para seus seguidores e patrocinadores. A visibilidade é um tipo de capital cultural mobilizado para se distinguir do anonimato no ecossistema digital.

Nesse ponto, o contraste com as celebridades é elucidativo. Há uma imensa literatura sobre o tema e dela é possível retirar dois elementos: a visibilidade e a dimensão pessoal na esfera pública. As celebridades são personalidades únicas, visíveis em escala ampliada, que dependem dos meios de comunicação para existir. Nesse caso, a condição de ser reconhecível é determinante. A visibilidade os distingue dos que padecem de uma existência opaca.

As celebridades vêm ainda marcadas pela dimensão do pessoal. Não é suficiente se apresentar na vida pública com os atributos que as modelam – ser atriz ou ator. A unicidade da existência deve ser ostentada em entrevistas e notícias que as aproximam do grande público por meio da exposição da casa em que vivem, dos filhos e das fofocas sexuais.

À primeira vista, os influenciadores são as celebridades de hoje. Entretanto, a aparência toca apenas a superfície das coisas. Há primeiro a questão da visibilidade. Ambos dependem dos meios técnicos, mas o espaço de atuação dos influenciadores restringe-se à internet. Eles não estão “em todos os lugares”. O próprio termo seguidor amarra-os a uma complementaridade e, quanto mais êxito têm, mais se tornam reféns da própria audiência. Movidos a likes e compartilhamentos, têm uma visibilidade incerta, oscilante.

Outra distinção é que, enquanto as celebridades são “estranhos íntimos” (utilizo uma ideia de Richard Schickel), cuja intimidade construída nas revistas é um artifício, com os influenciadores a relação se faz “cara a cara”. Os vídeos reforçam o sentimento de contiguidade e horizontalidade das relações. O próprio termo comunidade, usado na internet, delimita um território de amigos e conhecidos. Nessa miríade de comunidades que compõem a internet, o visível é, porém, encoberto pelas sombras que o circundam. •


* Renato Ortiz é professor do Departamento de Sociologia da Unicamp.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1198 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A exasperação do eu”

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