Cultura
Nas frestas do cotidiano
Em Os Óculos de Ouro, Giorgio Bassani descreve com sutileza a infiltração do pensamento fascista


Fora da Itália, Giorgio Bassani (1916-2000) é celebrado sobretudo como autor de O Jardim dos Finzi-Contini, levado ao cinema em 1970 por Vittorio De Sica. Mas Os Óculos de Ouro, o pequeno romance semiautobiográfico que publicou quatro anos antes, não lhe fica atrás, seja em estatura literária, seja em contundência política.
Como na maioria das obras de Bassani, a ação se passa quase toda em Ferrara, cidade onde o escritor passou a maior parte da infância e da juventude. O momento é entre 1936 e 1938, às vésperas da decretação das leis raciais na Itália fascista. A história é narrada retrospectivamente, em primeira pessoa, por um homem judeu maduro, que, na época dos fatos, era pouco mais que um adolescente recém-ingressado na faculdade de Letras, em Bolonha, a grande cidade da região da Emilia-Romagna.
O elusivo protagonista das reminiscências do narrador é um certo doutor Athos Fadigati, médico otorrino que se estabelecera em Ferrara duas décadas antes, vindo de Veneza. Solitário, de hábitos reclusos, Fadigati vai, aos poucos, sendo percebido como homossexual. De início, essa condição é mais sugerida, no mais das vezes com maldade, do que explicitada. “Bastava um gesto ou trejeito. Bastava apenas dizer que Fadigati era ‘assim’, que era um ‘daqueles’.”
OS ÓCULOS DE OURO. Giorgio Bassani. Tradução: Maurício Santana Dias. Editora Todavia (110 págs., 59,90 reais)
A revelação da homossexualidade do médico solteirão numa sociedade regida pela mentalidade fascista, com seu culto à virilidade, assume ares de escândalo e infâmia. Mais nas entrelinhas do que no discurso, insinua-se uma crescente solidariedade, para não dizer identificação, entre o narrador, oriundo de uma família judia de classe média, e o estigmatizado Fadigati, a despeito da pressão surda da família e dos amigos para que dele mantivesse distância.
A maestria de Bassani – ele próprio um intelectual judeu que militou na resistência antifascista e chegou a ser preso em 1943 – consiste em retratar com sutileza a infiltração da ideologia fascista na vida cotidiana e nas relações interpessoais, realçando, por contraste, a brutalidade dos tempos, com uma linguagem límpida e elegante, preservada na excelente tradução de Maurício Santana Dias.
A propósito, Gli Occhiali d’Oro também virou filme, dirigido em 1987 por Giuliano Montaldo, com Philippe Noiret no papel do doutor Fadigati. Salvo engano, nunca foi lançado no Brasil. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1210 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Nas frestas do cotidiano “
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