Cultura
Nas entranhas da Lava Jato
A Kotter Editorial leva adiante a missão de documentar os crimes da operação


O lançamento de O Orçamento Secreto de $. Moro marca mais um capítulo da história de uma editora que tem se dedicado a documentar os crimes e desmandos da Operação Lava Jato e a consequente destruição da economia nacional levada a cabo por um projeto político-eleitoral. Nascida e mantida em plena “República de Curitiba”, onde até hoje o ex-juiz é tratado como herói nacional, a Kotter Editorial enxerga a coleção de obras lançadas nos últimos anos não como a simples ocupação de um nicho no mercado livreiro, mas como uma missão e um compromisso com o País.
Escritor, pesquisador e fundador da editora, Salvio Kotter afirma que os livros são um desafio às forças reacionárias e diz ter assumido “os riscos de fazê-lo a 20 ou 30 centenas de metros da base das autoridades conluiadas”. Geograficamente, a sede da editora na capital paranaense fica entre o prédio da Justiça Federal, onde Moro despachava nos tempos de magistrado, e a Superintendência da Polícia Federal, na qual Lula esteve preso por 580 dias. “Isso nos colocava em contato direto com a realidade, com essa tremenda injustiça, impondo-nos um imperativo moral de fazer alguma coisa. Nossa reação foi dar voz a quem, como nós, percebia que aquilo tudo era uma arapuca das elites e da imprensa hegemônica com autoridades corruptas.” O desafio, prossegue, transmitia mais confiança do que inércia. “Essa gente é medrosa, covarde e não sabia o que tínhamos contra eles. Difícil saber, mas isso pode ter nos salvado de suas garras.”
Embora nunca tenha sofrido ameaças diretas nem pressões explícitas, Kotter diz ter sido alertado por amigos que tentavam dissuadi-lo do projeto, preocupados com o peso institucional e os interesses poderosos afetados pelas publicações. “Confio na avaliação dos meus advogados de que não incorro em qualquer irregularidade.”
Ancorado no relatório de correição elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, a partir de uma investigação da Polícia Federal, acrescido de quatro ensaios jurídicos escritos pelos advogados Antônio Caros de Almeida Castro, o “Kakay”, e Wilson Ramos Filho, o “Xixo”, além da ex-juíza federal Luciana Bauer, que atuou no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o TRF–4, e do próprio editor, O Orçamento Secreto desnuda os bastidores de um projeto de poder travestido de cruzada moral. Em seu texto, Kakay lembra que tudo teve início a partir de uma solicitação do juiz federal Eduardo Appio, recém-nomeado para a 13ª Vara Federal de Curitiba, à Polícia Federal, em maio de 2023, de apuração da existência de escutas ilegais instaladas na cela do doleiro Alberto Youssef e que se tornou uma espécie de gatilho para a apuração. Ao investigar a cadeia de custódia dos áudios, a PF encontrou planilhas relacionadas a acordos de leniência, registros de empenhos financeiros que transitavam entre o Paraná e Washington, além de ofícios que revelavam uma postura ambígua da Petrobras, ora tratada como vítima, ora como cúmplice, ao cooperar seletivamente.
Para o advogado Ramos Filho, idealizador do Museu da Lava Jato, o livro, quando impede que um documento dessa importância permaneça enterrado nos escaninhos de Brasília, torna-se uma arma vital nessa luta. “É um convite para que a memória prevaleça sobre a amnésia e para que a República não esqueça que, quando a lei se curva aos homens, o Estado de Direito torna-se pouco mais que uma ficção.”
Ao explorar documentos inéditos, relatórios pouco divulgados e decisões judiciais que contradizem a retórica dos juízes, a obra aponta como Moro, sua substituta, Gabriela Hardt, e a força-tarefa do Ministério Público sob o comando de Deltan Dallagnol operaram em zonas cinzentas, ignoraram garantias legais, manipularam delações, estimularam vazamentos seletivos e construíram acusações frágeis, demolidas mais tarde por tribunais superiores.
A imagem de Moro como herói foi desmontada peça por peça, com o tempo a revelar conexões políticas, diálogos comprometedores e interesses escusos. O livro não apenas expõe esses desvios como também documenta, relaciona e contextualiza os fatos. Menciona com frequência duas expressões que no formalismo do juridiquês soam como palavrões, “gestão caótica” e “possível conluio”, além de indicar a falta absoluta de controle, para dizer o mínimo, dos bilhões que a turma da Lava Jato pretendia administrar, oriundos de acordos de leniência e delações premiadas.
Não só. O caos administrativo não foi obra do acaso nem fruto de simples imperícia, mas parte de uma estratégia cuidadosamente pensada para atender a interesses privados sob o manto da moralidade pública. O grande objetivo da empreitada foi a tentativa de transferir 2,5 bilhões de reais para uma fundação de direito privado, a ser administrada pelos próprios procuradores. As negociações envolveram o Departamento de Justiça dos Estados Unidos. “O então procurador Deltan Martinazzo Dallagnol – de maneira mais pronunciada – e possivelmente outros membros do MPF, apesar de utilizarem expressões abstratas para justificar suas atuações em ‘prol da sociedade brasileira’, possuíam interesses bem concretos”, descreve o relatório à página 43. Os objetivos da fundação, assegura a corregedoria, indicavam “mais um expediente dentro de um conjunto de ações com foco no protagonismo pessoal, seja diretamente pela exposição de alguns de seus atores, (…) o que favorecia a projeção individual no campo político”. E finaliza: “A pessoalidade de todo esse esforço foi posteriormente concretizada pela migração do então juiz Sérgio Moro e do então procurador Deltan Dallagnol para a atividade político-partidária”.
O relatório do CNJ concluiu que o então juiz, Hardt, Dallagnol e demais procuradores “atuaram para promover o desvio, por meio de um conjunto de atos comissivos e omissivos”, do dinheiro, destinado à criação de uma fundação voltada ao atendimento de interesses privados, o que só não se consumou em razão de uma decisão do Supremo Tribunal Federal. “Feitas essas ponderações”, finaliza o documento, “tem-se que o estudo do conjunto é apto para a construção da hipótese criminal.”
Kotter promete não parar por aí. Novidades virão. •
Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital, em 16 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Nas entranhas da Lava Jato’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.