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Narrar o contraditório

Trinta anos depois de sua estreia na literatura, Bernardo Carvalho lança Os Substitutos, no qual explora a Amazônia

Narrar o contraditório
Narrar o contraditório
Trajetória sólida. O autor, de 63 anos, acumula prêmios, como APCA e Jabuti, e já foi parar até em lista de vestibular, com o romance Nove Noites, de 2002 – Imagem: Pablo Saborido
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Quando Bernardo Carvalho era criança, sua mãe gostava muito de ler romances de gênero. Entre eles, os de ficção científica eram os seus favoritos. Sem ter com quem conversar sobre o que lia, ela contava as histórias ao menino. Assim, explica Carvalho, ele, até hoje, é incapaz de ler um livro desse gênero, mas adora que lhe contem as histórias.

Tal fato, assim como essa dinâmica entre mãe e filho, é crucial para a estruturação narrativa do recém-lançado Os Substitutos. Na história, o personagem principal é um garoto de 11 anos que viaja com o pai para a Amazônia. Vão apenas os dois em um bimotor e o garoto se entretém lendo um romance de ficção científica. O autor conta, em entrevista a ­CartaCapital, que teve de lutar para manter esse segmento de seu romance.

“Meu editor não queria. Ele achava que deveria tirar toda essa parte por ser ficção científica. Mas, para mim, não tinha como ser diferente. São duas narrativas conectadas, é uma construção orgânica”, conta, via Zoom, satisfeito por ter vencido a batalha.

O lançamento de Os Substitutos coincide com o aniversário de 30 anos do surgimento de Bernardo Carvalho na cena literária. Foi em 1993 que ele publicou o primeiro livro, a coletânea de contos Aberração, já então pela Companhia das Letras, editora na qual se mantém. De lá para cá, seu nome sedimentou-se como um dos mais respeitados da literatura brasileira.

Nove Noites (2002), por exemplo, ganhador do prêmio Portugal Telecom, já foi adotado como leitura obrigatória para o vestibular da Fuvest. Mongólia (2003), ganhou os prêmios APCA e Jabuti. A despeito dos vários prêmios e do reconhecimento pelo stablishment, Carvalho, aos 63 anos, não se vê como um escritor canônico.

“Não dá para ser canônico em vida, é preciso ter liberdade para fazer as coisas que faço nos livros. Penso muito no Rubem Fonseca, que morreu escrevendo o que e como queria”, diz. “As pessoas comentavam que seus últimos livros não eram tão bons (quanto seus mais antigos). Mas e daí? Ele fazia o que queria. Ser canônico em vida é muito castrador.”

Graduado em jornalismo, o autor trabalhou na Folha de S.Paulo antes de estrear na literatura. Sabe que, ao longo desse percurso, foi conquistando leitores cativos, embora não seja “um escritor de massa”. “E acho isso até legal. Não tenho domínio do que as pessoas leem”, diz.

OS SUBSTITUTOS. Bernardo Carvalho. Companhia das Letras (232 págs., 69,90 reais). Compre na Amazon.

Seus romances variam muito nos temas, nas maneiras de narrar e até mesmo na geografia – O Filho da Mãe (2009) foi escrito em São Petersburgo. O que há de comum em seus 12 livros é a força da história sobre a constituição do presente. Mesmo quando boa parte da ação ocorre no passado, o presente acaba por surgir também. É esse o caso de Os Substitutos, que começa nos anos de 1960, com a viagem rumo à Amazônia, e termina no presente, com o protagonista adulto.

Carvalho gosta de dizer que sua literatura é “ancorada no presente”. No novo romance, duas questões que ecoam muito em nosso tempo são condutoras da narrativa.

A primeira delas tem a ver com a dizimação dos povos originários. Aos poucos, tanto o adolescente quanto nós, leitores, percebemos que a missão do pai ali na Amazônia não é das mais nobres.

A segunda questão vem à tona quando a narrativa está no presente. O namorado do protagonista, um jovem ator, acusa um diretor, com quem trabalhou anos atrás, de abuso. Carvalho, como bom provocador literário que é, não toca nessa ferida – que está na ordem do dia – de forma maniqueísta. O que interessa a ele é, na verdade, o contraditório. Daí a pergunta: não será o ato do rapaz fruto de oportunismo?

Os romances de Carvalho são assim: lidam com a micropolítica, partindo de situações pessoais para ganhar uma dimensão ampliada. Quando questionado se, nos seus livros, o pessoal é político, ele assente com a cabeça, e complementa: “Acredito que a política seja o avesso da moda. A política é dizer o momento de outra maneira, e também pode ser algo singular, uma contraposição ao discurso das massas”.

Os Substitutos começou a ser escrito em 2017, quando o autor tomava notas avulsas para um possível romance, para falar de coisas que, em Nove Noites, ficaram para ele incompletas. Mas o projeto foi temporariamente interrompido porque Carvalho foi dar um curso numa universidade alemã.

Quando voltou a São Paulo, em março de 2020, logo viu tudo fechar, por causa da pandemia. Pouco depois, recebeu um projeto de encomenda, que rendeu a novela O Último Gozo do Mundo (2021). Foi só a partir daí que pôde voltar às ideias que resultariam em Os Substitutos.

Nesse meio-tempo, o Brasil e o mundo passaram por grandes transformações, com a pandemia, a extra-direita no poder e o fortalecimento da literatura feita por autores pertencentes a grupos até então excluídos. Parte considerável do livro foi, inclusive, escrita nos momentos de instabilidade política e obscurantismo atravessados pelo País – uma contraposição ao momento de euforia política e econômica da época de Nove Noites e Mongólia.

“A literatura procura uma verdade, cuja medida é o risco ligado ao presente”, afirma. “Na literatura, como na política, não adianta nada repetir. O que interessa é o incômodo. A verdade só vem na hora em que corremos riscos.” E, novamente, ele cita Rubem Fonseca: “Ao contrário do cânone, quando você está vivo é para levar porrada mesmo. Ele estava a ponto de destruir sua obra (com seus últimos livros), e isso é se sentir vivo”. •

Publicado na edição n° 1282 de CartaCapital, em 25 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Narrar o contraditório’

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