Cultura
Narradores de si e do Brasil
Dois personagens ficcionais capturam a profunda mudança trazida pela chegada dos cotistas à universidade


Cerca de 15 anos atrás, dois jovens cotistas, ele da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e ela da Universidade de Brasília (UnB), realizavam o sonho do diploma universitário, graduando-se em Letras.
Ele, Jeferson Tenório, nascido no Rio de Janeiro em 1977, formou-se em 2010, fez doutorado em teoria literária na PUC–RS e é um dos principais nomes da literatura contemporânea brasileira, tendo ganhado o Prêmio Jabuti pelo memorável O Avesso da Pele (2020). Em outubro de 2024, Tenório lançou De Onde Eles Vêm.
Ela, Andressa Marques, nasceu no Distrito Federal em 1986, formou-se em 2009, fez doutorado em Literatura e Práticas Sociais pela própria UnB, é professora e estreou na ficção com A Construção, lançado em novembro de 2024.
Ambos os livros são narrados por jovens que, assim como os autores, vivenciaram experiências brasileiras de políticas afirmativas anteriores à lei das cotas, de 2012. Jordana, protagonista de A Construção, descreve assim esse momento:
— Ouvi dizer que vai ter uma lista diferente com nossos nomes, um asterisco na matrícula, algo assim. Cotistas. No dia em que me matriculei não perguntaram nada e gostei. Queria estudar e seguir.
Joaquim, o narrador do romance De Onde Eles Vêm, mostra-se menos otimista:
— Entrei pelo sistema de cotas raciais na universidade aos vinte e quatro anos, e tudo que posso dizer é que quase fui vencido pela burocracia. Quase me deixei vencer pelos papéis e protocolos e todas as estratégias que àquela altura eu pensava terem sido criados para que eu desistisse.
Joaquim, órfão de pai e mãe, foi criado pela avó e sempre gostou dos livros. Quando a história começa, ela tem demência e depende dos cuidados do neto, que está desempregado e conta as moedas para pagar a condução. Antes, tivera vários trabalhos – todos subalternos.
A Construção. Andressa Marques. Nós (192 págs., 69 reais) – Compre na Amazon
Jordana vive com o pai e a mãe e, embora ande com uma carteira muito velha e se queixe da presença impositiva do pai, que, durante muito tempo, foi também ausente, parece viver num lar com menos carências materiais que o narrador de De Onde Eles Vêm.
Como tipos sociais, Joaquim e Jordana espelham um ao outro. Os dois percorrem longos trajetos de ônibus até a faculdade – ele saindo do bairro da Alvorada, na região metropolitana de Porto Alegre, e ela de Taguatinga, cidade-satélite do Distrito Federal; têm nas bibliotecas um refúgio; vão a lan houses usar internet; e notam o pé atrás dos cotistas uns em relação aos outros.
Como personagens dotados de vida interior, eles são, no entanto, separados pelas diferenças na composição ficcional.
Tenório, autor experiente, dono de uma prosa concisa, ritmada e agridoce, que detém o leitor, cria um personagem cheio de nuances e conflitos. Em De Onde Eles Vêm, presente e passado se emaranham a partir da memória do narrador.
Andressa, por sua vez, opta por duas narrativas paralelas: a do presente de Jordana e a de seu passado familiar, marcado pela trajetória de um dos muitos homens que construíram Brasília. As tramas demoram a se conectar e levam a certa dispersão numa narrativa farta em metáforas. A voz da protagonista soa, em alguns momentos, mais a análise social do que a fala cotidiana.
Enquanto em A Construção o motor da personagem é o movimento negro, em De Onde Eles Vêm são os livros que abrigam a possibilidade de transformação – tanto íntima quanto social. Jordana sente-se empoderada ao ver o cabelo livre da chapinha e integrar-se ao grupo politizado da faculdade. O que fazia Joaquim se sentir grande era a literatura.
De Onde Eles Vêm. Jeferson Tenório. Companhia das Letras (208 págs., 74,90 reais) – Compre na Amazon
Juntos, eles nos ajudam a apreender o tamanho da mudança trazida pela presença de um número expressivo de estudantes negros nas universidades brasileiras.
Tenório e Andressa estavam no início da graduação quando Ana Maria Gonçalves lançou Um Defeito de Cor (2006), épico narrado por uma mulher nascida no reino do Daomé, atual Benin, em 1810, e levada para a Bahia como escrava. Nesse livro, a história da escravidão era, pela primeira vez, contada pelo ponto de vista da mulher negra.
De lá para cá, não só autoras seminais, como Conceição Evaristo e Carolina Maria da Jesus (1914–1977), foram ganhando mais relevo, como também uma nova geração de autores negros consolidou-se, carregando consigo novos protagonismos.
Um exemplo de personagens que passaram a ser vistas em sua complexidade e intimidade são as empregadas domésticas descritas em Cartas para a Minha Avó (Companhia das Letras, 2021), de Djamila Ribeiro, Estela Sem Deus (Companhia das Letras, 2022), de Tenório, Solitária (Companhia das Letras, 2022), de Eliana Alves Cruz, e O Céu para os Bastardos (Todavia, 2023), de Lilia Guerra.
Nos universos literários de A Construção e De Onde Eles Vêm, quem desponta são os jovens negros que cresceram ouvindo Racionais MCs, se enamoraram de gente de outra classe social e foram agentes – diretos e indiretos – de uma nova epistemologia acadêmica, que passou a incluir autores não brancos.
Nada disso se deu, porém, sem dor, como deixa claro Joaquim:
— Lembro de ter entrado no curso com tanta vontade. Como se fosse minha única chance na vida. Mas os problemas externos me tomaram de tal maneira que a universidade se tornou grande demais para mim.
Jordana, que, no primeiro dia de aula, chorou no banheiro sem papel higiênico na UnB, o ecoa:
– Senti que minha vida ali seria difícil e que meu passo a passo de boa estudante parecia insuficiente. Havia outros códigos que valiam mais.
Apesar das hostilidades, do medo de sucumbir e do peso de se sentirem no dever de reparar as injustiças de que seus antepassados foram vítimas, Joaquim e Jordana, na ficção, e Tenório e Andressa, na vida, estão reescrevendo a história do Brasil. •
Publicado na edição n° 1345 de CartaCapital, em 22 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Narradores de si e do Brasil’
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