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Não mostrar para fazer sentir

‘Zona de Interesse’ se contrapõe, por meio da estética, aos filmes acusados de tornar o Holocausto um espetáculo

Vizinhos. A família protagonista vive em uma área de 40 quilômetros quadrados em torno do campo de extermínio de Auschwitz – Imagem: Diamond Films/A24
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Papai sai cedo para o trabalho, enquanto mamãe fica cuidando da casa e mandando nas empregadas. No fim de semana, almoçam juntos à beira da piscina ou fazem piquenique no lago. Essa família, semelhante a tantas outras, vive em um lugar chamado Zona de Interesse. A expressão adotada pelos nazistas designava uma área de 40 quilômetros quadrados em torno do campo de extermínio de Auschwitz.

De um lado do muro, judeus, ciganos, homossexuais e deficientes físicos sofriam atrocidades e eram eliminados ou escravizados. Do outro, militares responsáveis pelo extermínio viviam confortavelmente com suas famílias.

Zona de Interesse, em cartaz nos cinemas brasileiros desde a quinta-feira 15, reconstitui o cotidiano da família Höss. Papai Rudolf, comandante de Auschwitz entre 1940 e 1943, vivia com a mulher, Hedwig, três crianças e um bebezinho em um lugar semelhante aos nossos condomínios de alto padrão, com muros que isolam e apagam o outro lado.

A família, saída das classes baixas, ascendeu e, a partir daí, transferiu-se para o que os nazistas chamavam de “espaço vital”. O grupo condensa, no filme, os muitos alemães que ocuparam os territórios invadidos por Hitler na Europa Oriental.

O longa-metragem dirigido pelo britânico Jonathan Glazer é um dos dez indicados ao Oscar de melhor filme. Se o peso pesado Oppenheimer é a aposta mais certa para o prêmio principal, Zona de Interesse é favorito na disputa de melhor filme internacional. A produção concorre ainda nas categorias de melhor direção, som e roteiro adaptado – seu ponto de partida é o romance homônimo de Martin Amis, com o qual as semelhanças vão pouco além do título.

Se estas previsões se confirmarem, o Oscar conclui a trajetória destacada que começou no Festival de Cannes do ano passado, com a conquista do Grande Prêmio do Júri. Zona de Interesse está, porém, longe de obter unanimidade.

Trata-se de mais um filme sobre o Holocausto? Sim e não.

Não se veem corpos esqueléticos guardados sob uniformes listrados nem execuções sumárias. Não há cenas de amontoados de cadáveres em câmaras de gás nem carrascos sádicos. Mas o recurso de apagamento não tem nada de negacionismo.

Embora o Oscar de melhor som seja considerado um prêmio secundário, a indicação nessa categoria põe em relevo a função do formidável sound design nesta reconstituição na qual o que se vê parece neutro, quase inócuo, mas as sonoridades, complementadas pela inquietante música de Mica Levi, desafiam o automatismo visual do público.

“A apatia é algo ativo. Quando permanecemos inativos ou desviamos o olhar, normalizamos as coisas”, diz o diretor Jonathan Glazer

Gritos, sons de tiros, latidos de cães, apitos dos comboios que transportavam as multidões para o extermínio, além do rumor da incineração dos corpos em escala industrial impelem a imaginação do espectador a construir, internamente, o horror. Há dois filmes em Zona de Interesse. O que não se vê é o fantasma.

Tal escolha é uma resposta estética a questões éticas levantadas desde que o cinema começou a representar o que os nazistas batizaram de “Solução Final”. Os efeitos emocionais provocados por movimentos de câmera eloquentes, a caracterização de atores ou a reconstituição dos campos da morte como cenários produziram discussões importantes sobre os excessos do cinema em relação a um evento excepcional como o Holocausto.

Muitos realizadores já foram acusados de, em nome da memória, estetizar a morte e transformar a barbárie em entretenimento. Kapò: Uma História do Holocausto (1960), A Lista de ­Schindler (1993), A Vida É Bela (1997), entre outras ficções, enfrentaram objeções pertinentes a respeito do que e como exibiram. No espectro do documentário, o pioneiro Noite e Neblina (1956) e o definitivo Shoah (1985) impuseram limites claros ao espetáculo abraçado pelas ficções.

“Como encenar pessoas sendo trucidadas? Quanto de emoção é demais? Como o público reage a instantes de despreo­cupação em meio a tanto sofrimento?”, questiona a historiadora ­Annette Insdorf no clássico estudo ­Indelible Shadows; Film and Holocaust.

Desde sua primeira exibição no Festival de Cannes, Zona de Interesse vem despertando reações antagônicas. Os defensores entendem que o filme prolonga a escolha formal de O Filho de Saul (2015), ao manter o horror fora de quadro enquanto mergulha o espectador numa experiência sensorial. As críticas negativas, por sua vez, acusam Glazer de recair num estetismo que neutraliza a responsabilidade e a culpa.

Se tais discussões tendem a interessar mais a teóricos, um efeito palpável do filme reside na ideia de “banalidade do mal”. Ainda que também banalizada, a expressão formulada por Hannah Arendt no controverso Eichmann em ­Jerusalém ajuda a entender a fácil adesão do homem ordinário aos fascismos.

Quando representam o nazista como carrasco e monstro sádico, os filmes sobre o Holocausto nos isentam, projetando o mal no “outro”, em cuja inumanidade não nos reconhecemos. A inteligência de Zona de Interesse consiste em mostrar que a “banalidade do mal” não está nos outros, mas em nós.

“Todos temos um potencial de carrasco?”, perguntou a jornalista Eva Bester ao diretor Jonathan Glazer em entrevista ao podcast Grand Canal. “Não sugiro que todos tenhamos essa possibilidade, mas nós permitimos, ou encorajamos os carrascos a cometer atrocidades em nosso nome, porque queremos preservar nosso conforto, nossa segurança”, respondeu o cineasta. “A apatia é algo ativo. Quando permanecemos inativos ou desviamos o olhar, normalizamos as coisas.” •

Publicado na edição n° 1298 de CartaCapital, em 21 de fevereiro de 2024.

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