Cultura

assine e leia

Não deixe o samba morrer

Epicentro da criação do mais brasileiro dos ritmos, a Pequena África enfrenta um processo de “disneyficação”

Não deixe o samba morrer
Não deixe o samba morrer
Turistas lotam a Pedra do Sal, embalados pelo som da cuíca, do pandeiro e do cavaquinho – Imagem: Mauro Pimentel/AFP e Alexandre Macieira/Riotur
Apoie Siga-nos no

Um prédio de 12 andares na Rua Sacadura Cabral, na região central do Rio de Janeiro, abrigou em meados do século passado as sedes de O Jornal e Diário da Noite, ambos pertencentes ao mais emblemático barão da mídia brasileira, o fundador dos Diários Associados, Assis Chateaubriand. Neste ano da graça de 2025, o edifício passa por uma modernização – ou retrofit, na linguagem do mercado imobiliário – para se tornar um residencial com 192 unidades. O prédio fica perto da Pedra do Sal, que, ao lado do Cais do Valongo e do Cemitério dos Pretos Novos, ilustra a chamada Pequena África, na zona portuária da cidade. O empreendimento é a mostra maior da transformação da região e como a essência e a alma daquele pedaço da cidade dá os últimos suspiros.

O projeto imobiliário adjacente à Pedra do Sal, segundo o historiador Luiz Torres, tem sido preparado para se tornar um residencial à revelia de todos os conceitos de preservação da identidade cultural local. “Vão colocar um equipamento que não tem nada a ver com o sentido de ser da Pequena África.” A área ficou conhecida a partir do fim do século XIX por reproduzir a vida de africanos e seus descendentes no Rio, muitos deles migrantes da Bahia libertados pela Lei Áurea de 1888, com seu modelo próprio de religiosidade, sociabilidade e festejos. A região também sofreu influência de portugueses, espanhóis e judeus, que ali se instalaram há mais de cem anos para estabelecer negócios de pequena monta.

Passado mais de um século, nunca ficou tão evidente que a identidade da Pequena África está sob a ameaça da especulação imobiliária e da mudança de perfil socioeconômico dos moradores. Desde os anos 1990, a prefeitura carioca tenta modificar o perfil da região, após décadas de abandono. Foi, no entanto, a revitalização da zona portuária, a partir do Projeto Porto Maravilha, criado em 2009 na esteira da preparação para os Jogos Olímpicos de 2016, que o plano ganhou impulso. O prédio em processo de ­retrofit, diz Torres, fica em uma área da Comunidade de Remanescentes do Quilombo da Pedra do Sal, que deveria ter sido ouvida sobre seu destino. Ele próprio foi quilombola. “Sou de uma família que vive na localidade há, ao menos, 150 anos.”

A memória de uma área que concentra parte essencial da cultura negra está sob risco

A Pequena África surgiu da expressão “África em miniatura”, cunhada no início do século XX pelo compositor e pintor Heitor dos Prazeres, ao ver o antigo carnaval da região com uma quantidade expressiva de negros, incluindo escravos libertos, brincando nos cordões carnavalescos, precursores das escolas de samba, com fartos elementos ligados à africanidade. As rodas de samba nas casas das tias baianas, as negras migradas da Bahia com papel de liderança comunitária, a começar por Tia Ciata, dona da casa onde o samba tomou forma, também o impressionava, principalmente pela batucada dias a fio, em um tipo de convívio particular. A Pedra do Sal, que antes dos sucessivos aterros da zona portuária tocava as águas da Baía de Guanabara, era o ponto de embarque e desembarque de mercadorias e local de convivência da comunidade negra, com vários espaços de cultos afro no entorno, como o terreiro de candomblé de João Alabá, que atualmente abriga um centro cultural. A cultura do samba e do carnaval, a religiosidade e a zona portuária com seus trabalhadores são o tripé da formação dos valores da Pequena África, de acordo com Torres.

Merced Guimarães tinha 10 anos de idade quando se mudou para a Rua Pedro Ernesto, na Gamboa, e chegou a ver de perto uma mostra do que era a localidade no início do século XX. Várias ruas­ tinham uma sociedade carnavalesca. Daquela época resta apenas o bloco Filhos de Gandhi, com 74 anos de existência, autointitulado guardião da Pequena África, mas sem o reconhecimento de outrora. Os terreiros se espalhavam pelo enclave. “Havia ao menos quatro próximos de casa”, lembra. Não sobrou nenhum. Merced teme a “disneyficação” do território. Ela vê os festejos relacionados à história do bairro, antes promovidos pelos moradores, nas mãos de gente de fora, como os blocos de carnaval, desvinculados da memória local.

A história de Merced confunde-se com a memória do bairro de forma muito profunda. Durante a reforma de sua casa, em 1996, foram descobertos vários ossos de um antigo cemitério de escravos. Os africanos mortos na travessia do Atlântico ou no desembarque no Cais do Valongo eram jogados em covas rasas no terreno onde a residência viria a ser construída. Nove anos depois da descoberta, ela fundou o Instituto Pretos Novos e defende a tese de que é preciso ocupar a Pequena África com o olhar humano. “Nada contra (a ocupação), mas é preciso ter respeito. Ali teve uma história sofrida.”

O antigo Cais do Valongo e a casa de Tia Ciata, onde ganhou forma o primeiro samba oficialmente gravado no Brasil – Imagem: Alexandre Macieira/Riotur e Michael Runkel/Robert Harding/AFP

Segundo o historiador Romney ­Lima, pós-graduado em Cultura Africana e mestre em História com foco no Rio de Janeiro, não foi o Poder Público que deu à Pequena África a sua condição mítica na cidade. “Foi o movimento negro que tomou a região como sagrada e referência.” Houve uma pressão, prossegue, de grupos negros pela preservação e valorização da memória da diáspora no lugar, fato confirmado por Torres, que participou ativamente dos comitês que reuniam moradores locais para discutir a transformação proposta pela prefeitura. A força do grupo, inclusive, influenciou no reconhecimento do Cais do Valongo como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco, em 2017, por ser o principal ponto de desembarque de negros africanos nas Américas – ao menos 1 milhão. “Estávamos nos comitês de discussão protegendo esses marcos”, afirma Torres.

O novo ordenamento da zona portuá­ria do Rio de Janeiro promoveu grandes mudanças, com a inauguração, entre outros, do Museu do Amanhã e do Boulevard Olímpico, e abriu espaço para um boom de construção de prédios residenciais ao longo de toda área. Outro empreendimento emblemático em processo de retrofit é o Edifício A Noite, na Praça Mauá, onde funcionaram os estúdios da Rádio Nacional na “Era de Ouro” do rádio. O edifício terá 447 unidades habitacionais. A população local, estima-se, vai dobrar nos próximos anos, por conta das ofertas de novas moradias. Boa parte dos imóveis, criticam os urbanistas, tende a servir a aluguéis de curta temporada, ao estilo Airbnb, outra distorção do modelo de ocupação anterior.

Com os novos empreendimentos, a população no entorno vai dobrar

A gentrificação não começou agora. O Morro da Conceição, que tem na base a Pedra do Sal, tem aluguéis de imóveis a preços bem mais altos do que antes da revitalização da zona portuária, mudando o perfil dos moradores e turistas. Por outro lado, com toda a reurbanização, ainda há cortiços nas redondezas, um tipo de moradia coletiva precária muito comum no local desde o fim do século XIX.

A região atrai, sobretudo, o turismo alternativo da cidade, mas moradores temem um boom a qualquer momento, como ocorreu com o bairro vizinho da Lapa no início dos anos 2000. O dia em que mais se veem turistas e habitantes de outros bairros é às segundas-feiras, quando ocorre o Samba da Pedra do Sal. Embora o intuito seja celebrar a herança local com a realização de uma roda de samba num dos marcos simbólicos da Pequena África, pipocam, no entanto, os sinais dos novos tempos. Nas vielas que convergem à Pedra do Sal, no dia em que a roda de samba acontece, se aglomeram inúmeras barracas com a oferta de drinques diversos e ao som de funk e música eletrônica. No Largo da Prainha, polo de bares e restaurantes da Pequena África, a uma quadra da Pedra do Sal, uma multidão se aglomera mais para beber do que para ouvir samba.

As noites de segundas-feiras sintetizam a transmutação. Para Torres, é necessária uma política de afirmação local antes que seja tarde. “Há um volume de gente circulando no lugar que nem sabe o que se passou ali.” •

Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Não deixe o samba morrer’

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

10s