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Na Rússia do século XIX, ecos do Brasil

Na novela o cupom falso, publicada após sua morte, tolstói disseca a violência gerada pelo abismo social

Na Rússia do século XIX, ecos do Brasil
Na Rússia do século XIX, ecos do Brasil
A narrativa inspirou o filme O Dinheiro, de Bresson – Imagem: MUBI
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Lê-se na contracapa da recém-lançada edição de O Cupom Falso que, depois dos colossais Guerra e Paz e Anna Kariênina, Lev Tolstói, “no auge de sua fama, dedicou-se a buscar uma forma minimalista”. E é essa busca que se faz sentir em cada uma das 78 páginas da pequena novela gestada por mais de uma década e publicada apenas em 1911, um ano após a morte do autor russo.

A história tem início quando Mítia, filho de Fiódor Mikháilovith, presidente da Câmara do Tesouro, pede ao pai um adiantamento da mesada. Em vez de dinheiro, o pai, um “liberal melancólico”, de “honestidade incorruptível”, estende-lhe, irritado, um cupom. O papel pode ser trocado por uns poucos rublos, mas o valor é insuficiente para que o adolescente quite a dívida contraída com um amigo da escola.

Diante da pressão do colega e da irredutibilidade do pai, Mítia recorre a um conhecido afeito a malandragens que, diante do impasse, oferece a solução: “Muito simples. Ponha o número um antes de dois rublos e cinquenta, assim terá doze rublos e cinquenta”. Assim foi feito.

Inicia-se dessa forma a trama que envolve 20 e tantos personagens e à qual o cineasta francês Robert Bresson deu o nome de O Dinheiro em sua memorável adaptação cinematográfica do livro. A ideia de que “o dinheiro é tudo” está, afinal de contas, no centro do pensamento do personagem que, ao mentir em um depoimento, terá papel central no desenrolar da sequência de tragédias imaginadas por Tolstói.

O Cupom Falso. Lev Tolstói. Tradução: Priscila Marques. Editora 34, Coleção Leste (96 págs., 48 reais)

A primeira delas recai sobre o vendedor de lenha Ivan Mirónov. Enquanto o cupom falso esteve entre aqueles mais bem colocados social e financeiramente, pôde passar por verdadeiro. Mas, ao chegar às mãos do mujique ­Mirónov, implica em julgamento e condenação. O mosaico social construído pelo autor é marcado pelo abismo entre classes e pela violência daí decorrente.

Extorsões, roubos (primeiro dos proprietários e comerciantes, depois de todos), assassinatos, execuções, a vodca consumida em excesso, as famílias partidas, a fé em Cristo e a descrença na Justiça nos fazem ouvir, nas precisas e impressionantes descrições, ecos do Brasil de hoje.

Do assassino convicto de que senhores e autoridades são “sanguessugas do povo” ao senhorio temeroso de que o povo “tome posse daquilo que não lhe pertencia”, todos parecem movidos por uma engrenagem à qual são alheios e que a todos moe.

O final redentor deixa a sensação de que Tolstói não conseguiu alcançar a conclusão ideal para sua história. É que, talvez, ela não fosse mesmo possível. •

Publicado na edição n° 1259 de CartaCapital, em 17 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Na Rússia do século XIX, ecos do Brasil’

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