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Na natureza selvagem

Vários autores têm-se voltado para os animais, as plantas e o oceano na tentativa de compreender o mundo

Na natureza selvagem
Na natureza selvagem
Imagem: iStockphoto
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Nos últimos anos, uma das vias de escape do pensamento contemporâneo – da literatura à filosofia – tem sido aquela em direção aos animais e às plantas. Desde O Animal Que Logo Sou, de Jacques Derrida, até Revolução das Plantas, de Stefano Mancuso, os dois temas surgem como uma fuga dos limites do humano e de sua centralidade incontornável na cultura ocidental.

A recorrência desses tópicos pode, além disso, ser lida como uma crítica ao narcisismo dos seres humanos alimentados pelas redes sociais, pelo imperativo da produtividade e pela necessidade de estar sempre em atualização. É como se esses autores nos dissessem que, pela via das plantas e dos animais, e para além do nosso umbigo, outro mundo é possível.

Um romance de 1967, recém-lançado no Brasil, ajuda a contextualizar esse desconforto diante do homem e, especialmente, de sua capacidade de destruir o meio ambiente, sua própria casa. Gelo, uma joia rara no panorama literário do século XX, foi publicado por Anna Kavan na Inglaterra apenas um ano antes de sua morte. A narrativa não apenas lida com a possível destruição do planeta – por uma avalanche de gelo causada por uma guerra nuclear –, mas o faz a partir de uma surpreendente mistura de gêneros.

Um conjunto de obras lançadas recentemente parece testar os limites do antropocentrismo

A indeterminação das vozes – o narrador, a garota, o guardião – aproxima Gelo do teatro; o apocalipse ecológico evoca a ficção científica; já o tema da destruição do planeta dá ao relato ares de romance de ideias, ou de ensaio. Ao mesmo tempo, a beleza do estilo de Kavan evoca a possibilidade de um recomeço. “Enxerguei ilhas espalhadas sobre o mar, uma vista aérea normal”, escreve. “Então algo extraordinário, que não era deste mundo: uma parede de gelo iridescente projetando-se do mar, um talho empurrando uma crista de água à frente enquanto se movia.”

Já nos anos 1960, o crítico de arte e romancista John Berger ocupava-se dessas questões, ou seja, da convivência do ser humano com o ambiente, os animais, as paisagens. Em 1977, ele publica um ensaio pioneiro, Por Que Olhar Para os Animais?, que agora dá título a uma coletânea de textos, englobando o período de 1971 a 2009.

Berger alia a sensibilidade de alguém treinado nas artes visuais à ética daqueles que reconhecem na natureza um campo de possibilidades, não de domínio. Nos oito textos do livro, Berger investiga as interações entre instinto e cultura e entre indivíduo e natureza, comentando pintores, fotógrafos, autores da Antiguidade. Tudo isso, articulando poe­sia, ensaio, reportagem e autobiografia.

Não há infância sem animais, argumenta Berger. Dos brinquedos às decorações, passando pelos desenhos animados e pelas visitas aos zoológicos, o mundo animal sempre povoou a infância. Uma renovação do olhar sobre a realidade, nos diz o autor, exige não só um resgate da curiosidade infantil, mas uma aproximação desinteressada do mundo animal.

GELO.Anna Kavan. Tradução: Camila Von Holdefer. Fósforo (208 págs., 69,90 reais).

ELOQUÊNCIA DA SARDINHA.Bill François. Tradução: Julia da Rosa Simões. Todavia (160 págs., 59,90 reais).

ESCUTE AS FERAS.Nastassja Martin. Tradução: Camila Vargas Boldrini e Daniel Lühmann. Editora 34 (112 págs., 46 reais).

POR QUE OLHAR PARA OS ANIMAIS?John Berger. Tradução: Pedro Paulo Pimenta. Fósforo (106 págs., 59,90 reais).

É precisamente o que encontramos em um livro recente do francês Bill François, A Eloquência da Sardinha, saborosa coleção de curiosidades sobre a vida marinha. François, que é físico e doutor em hidrodinâmica, elenca histórias sobre as mais diversas espécies – da baleia ao arenque, passando pelo bacalhau e pela enguia –, mostrando como a vida de todos os seres do planeta está interligada, de maneiras que nem sequer imaginamos em nosso cotidiano terrestre.

François ataca o antropocentrismo pelo flanco da vastidão de nossa ignorância. O estudo científico dos mares e oceanos mostra que aquilo que conhecemos é uma ínfima parcela de tudo que ainda há por conhecer. Cada descoberta leva a um conjunto de novas questões, que dizem respeito à capacidade de localização dos peixes, ao desenvolvimento de linguagem nas baleias e de memória olfativa em espécies como o salmão ou a anchova. Além de informativo e instigante, o livro de François figura como um portal que nos conduz à perplexidade. Ele faz o leitor pensar na vastidão inexplorada do universo aquático, que corresponde a 75% do planeta.

Em paralelo ao amplo panorama de François, temos o estudo minimalista de Nastassja Martin em Escute as Feras, ensaio narrativo sobre sua experiência como pesquisadora na Sibéria. Treinada como antropóloga, Nastassja viaja para estudar famílias que voltaram a viver nas florestas do Grande Norte subártico, até que o inesperado acontece: ela é atacada por um urso. O acidente a faz repensar seu percurso, sua vida, sua mentalidade.

“As árvores, os animais, os rios, cada parte do mundo guarda tudo o que se faz e tudo o que se diz, e até mesmo, às vezes, o que se sonha e o que se pensa”, escreve, elaborando as palavras de seus informantes. De repente, não se trata mais apenas de uma pesquisadora e de um urso, mas da transformação de uma visão de mundo: “A neve recobre tudo, sou o peixe que volta a mergulhar e se transforma em pássaro multicolorido sob a superfície fria e escura do rio”.

Kavan, Berger, François e Nastassja Martin oferecem ao leitor uma perspectiva alternativa a respeito daquilo que a natureza é e pode ser. A estranheza criativa desses quatro livros está a serviço de uma ideia tão extravagante quanto óbvia: existe muito mais no mundo do que supõe nosso vão antropocentrismo. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1205 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Na natureza selvagem”

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