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Mundos (ir)reais

A estreia de Girassol Vermelho chama a atenção para um gênero de trajetória singular no Brasil: a ficção científica

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Forças invisíveis. Girassol Vermelho é dirigido pelo mineiro Éder Santos – Imagem: Trem Chic
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Um homem em busca de redenção é sequestrado e preso numa estrutura de vidro, onde é interrogado e torturado pela força invisível de um governo mecanizado e opressor. Assim começa Girassol Vermelho, novo filme do mineiro Éder Santos, que estreia na quinta-feira 3 no circuito e oferece ao público um exemplo de ficção científica genuinamente brasileira.

Apesar de ser um dos gêneros mais populares do cinema, sendo produzido, sobretudo, em países que têm uma indústria pujante – como os Estados Unidos –, o sci-fi, no Brasil, só tem sido estudado e reconhecido mais recentemente. A primeira produção de que se tem notícias é a comédia Uma Aventura aos 40 (1947), de Silveira Sampaio, que mostrava um professor que, num futuro indefinido, podia interagir com programas de tevê.

Uma das razões para a pouca visibilidade do gênero por aqui é o fato de muitos títulos não serem apresentados como ficção científica, justamente pela falta de tradição e de “legitimidade” – sempre foi difícil detectar e assumir elementos constitutivos desse tipo de narrativa. “A percepção sobre esses filmes passou meio incógnita pela historiografia da produção nacional e também em estudos internacionais”, afirma Alfredo Suppia, autor de Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro (Devir, 2013).

A ausência de um cânone bem definido dificulta o mapeamento do gênero no País. Para o jornalista Gabriel Carneiro, coorganizador do livro Cinema Fantástico Brasileiro (Letramento, 2023), muitos títulos classificados como suspense, drama ou comédia poderiam ser entendidos como ficção científica. “Diferentemente do horror, que contou com uma figura popular como o Zé do Caixão, a ficção científica não teve um símbolo assim. Houve, nos anos 1960 e 1970, títulos que se assumiam parte do gênero, mas nenhum com a popularidade ou relevância do Zé do Caixão”.

São da década de 1960 O 5o Poder, de Alberto Pieralisi e Carlos Pedregal, no qual um casal, no Rio de Janeiro, enfrenta uma conspiração contra o Brasil perpetrada por meio de mensagens subliminares enviadas pela tevê; Os Cosmonautas, de Victor­ Lima, em que Ronald Golias e Grande Otelo são treinados como astronautas para embarcar na primeira missão espacial do País; e Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr., no qual uma família perambula por um lugar devastado por uma guerra nuclear.

Velhas distopias. No sentido horário, O 5º Poder (1962), de Alberto Pieralisi e Carlos Pedregal; Quem É Beta? (1973), de Nelson Pereira dos Santos, e Abrigo Nuclear (1981), de Roberto Pires – Imagem: Redes Sociais

Nos anos de 1970, Nelson Pereira dos Santos fez Quem é Beta? Na década seguinte, Walter Hugo Khouri lançou Amor Voraz; e Roberto Pires, Abrigo Nuclear.

São todos filmes de orçamento limitado, nos quais o espectador não vê a profusão de efeitos especiais tão associada ao gênero, mas se depara com alienígenas, máquinas e engenhocas, mundos distópicos ou apocalípticos e enredos especulativos sobre os rumos do planeta e das galáxias.

“Dinheiro não é impedimento para uma sci-fi, mas a imagem que se faz do gênero está intimamente ligada a isso. Aqui é necessário encontrar formas criativas de manter alguma verossimilhança em meio à precariedade”, diz Carneiro. Como observa Suppia, a sci-fi local aposta em roteiros mais condizentes com a realidade nacional e se deixa impregnar pelos contextos de cada época.

Durante certo período, o gênero se fez especialmente presente em produções infantojuvenis – sobretudo em projetos vinculados a atores ou personagens da cultura popular e da televisão. Foi esse o caso de Os Trapalhões na Guerra dos Planetas (1978), A Princesa Xuxa e os Trapalhões (1989), A Princesa e o Robô (1984), com a Turma da Mônica, e Acquaria (2003), com Sandy & Junior.

Também algumas animações se aproveitaram das infinitas possibilidades de invenções de mundos e situações oferecidas pelo gênero, como em Cassiopeia (1996), Uma História de Amor e Fúria (2013) e Placa-Mãe (2024).

No segmento mais autoral, alegorias e metáforas seguem fortes em produções contemporâneas. Há as distopias sociais do brasiliense Adirley Queirós em Branco Sai, Preto Fica (2014), Era uma Vez Brasília (2017) e Mato Seco em Chamas (2022); o terror ambiental do capixaba Rodrigo Aragão em Mangue Negro (2008); e o sarcasmo do pernambucano Kleber Mendonça Filho, que usa códigos do gênero em Bacurau (2019).

“A percepção dos filmes de ficção científica no Brasil passou da categorização ambígua nos anos 1960 até o reconhecimento, apropriação e apreciação nas últimas décadas”, afirma Suppia. Até mesmo a Netflix resolveu apostar no gênero no País, com a série 3% (2016–2020) e o filme Biônicos (2024).

Neste momento, além de Girassol Vermelho, os cinemas exibem a animação Mundo Proibido, que acompanha aventureiros espaciais atrás de um tesouro. •

Publicado na edição n° 1356 de CartaCapital, em 09 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mundos (ir)reais’

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