Cultura
Morre Arthur Moreira Lima, pianista que rompeu barreiras entre o erudito e o popular
Considerado um dos maiores nomes da história do piano brasileiro, ele tocou nas principais salas do mundo e levou piano em caminhão pelo interior do Brasil
No início dos anos 2000, Arthur Moreira Lima, o lendário pianista brasileiro que desfilou o seu repertório romântico por salas de concerto em cidades como Berlim, Viena e Praga, decidiu colocar o seu piano em cima de um caminhão e cruzar o país. Naquele projeto, conhecido como “Um piano pela estrada”, o artista levou a pessoas que raramente tinham acesso a música clássica uma mistura entre Chopin e Luiz Gonzaga, passando por Liszt e Pixinguinha.
A capacidade de transitar com maestria entre o clássico e o popular era uma das marcas de um artista que o país acaba de perder. Arthur Moreira Lima faleceu na noite da última quarta-feira 30, aos 84, em Florianópolis (SC). Ele lutava contra um câncer no intestino.
“Moreira Lima teve toda sua trajetória dedicada a superar a distinção entre música erudita e popular”, destacou a Orquestra Filarmônica Catarinense (OFiC), afirmando que “seu legado certamente irá inspirar orquestras e músicos do Brasil por décadas e décadas”.
Distante dos grandes centros da música clássica, o Brasil conquistou espaços importantes em um território cuja regra é a seletividade. Foi assim com Heitor Villa-Lobos [1887-1959], considerado o principal compositor de música clássica, com Nelson Freire [1944-2021], e com Moreira Lima, entre outros nomes de peso.
No caso de Moreira Lima, o domínio do estilo romântico no piano o levou para onde nenhum outro brasileiro foi: o segundo lugar no histórico Concurso Chopin, em Varsóvia, em 1965. O concurso é uma das mais altas balizas do piano erudito do mundo. À época, a vencedora do prêmio foi a argentina Martha Argerich, que nunca deixou de revelar a sua admiração pelo brasileiro.
Entre 1969 e 1970, ele ficou em terceiro lugar em dois concursos importantes do cenário mundial: o Concurso Internacional de Piano de Leeds, no Reino Unido, e o Concurso Tchaikovsky, na Rússia.
Arthur Moreira Lima começou a estudar piano aos seis anos. Pouco depois, aos oito, já tocava com a Orquestra Sinfônica Brasileira, executando, entre outros compositores, Mozart. No seu processo de formação pianística, passaram professoras como Lúcia Branco, que também ensinou Nelson Freire e Tom Jobim. Na Europa, esteve sob a batuta de Rudolf Kehrer, na Rússia, e Marguerite Long, na França.
Pelo Brasil e pelo mundo
O currículo de alto nível levou Moreira Lima a transitar com naturalidade no circuito da música erudita. Elogiado pela sua sensibilidade no piano, apresentou-se ao lado das filarmônicas de Moscou, Berlim e Varsóvia.
Isso, por si só, já encerraria o pianista em um universo desejado por quem se dedica às complexas partituras de Brahms, Tchaikovsky ou Beethoven. Mas Moreira Lima tinha um desejo por algo que ia além da rotina das salas de espetáculo.
Seu interesse, sobretudo, pela música – “se você não der a mínima para a carreira, mas fizer o melhor que puder com a música, você vai tocar muito melhor”, chegou a dizer ao New York Times – foi o que o fez se lançar a outras empreitadas culturais, pelas quais também é lembrado.
Moreira Lima apresentou o programa Toque de Classe, da TV Manchete, entre 1985 e 1986. Como característica, o programa recebia, ao mesmo tempo, convidados como o compositor Radamés Gnattali [1906-1988] e cantores populares, como Ney Matogrosso e Nelson Gonçalves.
Moreira Lima também foi subsecretário de Cultura do Rio de Janeiro, durante o governo de Leonel Brizola. Filiado ao PDT, ele foi entusiasta das campanhas presidenciais de Brizola, em 1989 e 1994. Moreira Lima também geriu a Sala Cecília Meireles, no Rio, e atuou como vice-presidente do Theatro Municipal da cidade.
A relação com o choro
“O choro é, de certa forma, a alma da música brasileira. E esse envolvimento com a obra de [Ernesto] Nazareth me introduziu nesse mundo mágico, imperceptível para quem está imerso na música clássica. Mas ele existe, é muito rico e me ajudou, inclusive, na minha interpretação de música clássica”, disse Moreira Lima, em 2002.
O entendimento de que o choro seria “a alma da música brasileira” fez o pianista gravar , na metade dos anos 1970, o álbum duplo “Arthur Moreira Lima Interpreta Ernesto Nazareth”, lançado pela Marcus Pereira Discos.
O álbum é considerado um acontecimento de primeira grandeza do piano brasileiro, sendo celebrado por pianistas clássicos e por admiradores do choro. Com obras como “Odeon” e “Brejeiro”, o LP também se prestou a uma espécie de resgate da obra de Nazareth.
Ao longo de toda a carreira, Moreira Lima gravou mais de sessenta discos, incluindo, além dos compositores já citados, obras de Sergei Rachmaninoff, Johann Sebastian Bach e Alexander Scriabin.
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