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Modos de partir

Um conjunto de livros e filmes recentes procura enfrentar o debate ético entre a sacralidade da vida e a qualidade do viver

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O fim. Se há diferentes perspectivas sobre o que é a vida plenamente vivida, por que haveria consenso sobre o que é a melhor morte? – Ilustração: Pilar Velloso, Midjourney v7 e Istockphoto
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Embora a finitude humana tenha sido sempre um tema recorrente na arte, ela tem ganhado, no mercado editorial e na indústria audiovisual atuais, um recorte específico: o dos direitos do fim da vida.

Escritores, roteiristas e diretores parecem especialmente motivados a discutir a questão ética que paira sobre dois princípios: o da sacralidade da vida e o da qualidade do viver.

No cinema, em 2024, os modos pelos quais uma pessoa deseja partir foram tratados em dois filmes realizados por diretores consagrados. Pedro ­Almodóvar, de 76 anos, fez O Quarto ao Lado, disponível na Netflix. Costa-Gavras, de 92 anos, dirigiu Uma Bela Vida, que foi exibido nos cinemas brasileiros neste ano.

O longa-metragem do cineasta espanhol, centrado na eutanásia, baseia-se no romance O Que Você Está ­Enfrentando (176 págs., 74,90 reais), de Sigrid Nunez, que a Editora Instante reimprimiu para aproveitar a divulgação gerada pelo filme. Costa-Gavras inspirou-se no livro Le Dernier Soufle (O Último Suspiro, também título original do filme, em francês), de Régis Debray e Claude Grange, centrado nos cuidados paliativos.

Essas produções surgem em um contexto marcado pela expansão e sofisticação dos recursos médicos – cada vez mais capazes de prolongar a vida – e pelo aumento da longevidade da população. O que seus criadores parecem buscar é uma compreensão mais profunda das pessoas que, diante de uma doença terminal, manifestam a vontade de morrer.

O envelhecimento populacional tem feito com que a discussão em torno da eutanásia se intensifique na arte

Nas obras, fica claro que o fim é ainda vida e que, portanto, cada um deve ter o direito de vivê-lo como considerar melhor.

No Brasil, foi divulgada, há um ano, a carta deixada pelo poeta e letrista Antonio Cícero, que foi à Suíça para praticar a morte assistida. Portador de Alzheimer, ele já não conseguia ler ou escrever poemas e deixara de reconhecer amigos. Na carta, afirmou: “Quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade”.

A Suíça foi também o destino da personagem retratada em O Dia em Que Eva Decidiu Morrer (Vestígio, 224 págs., 67,90 reais), do jornalista Adriano Silva, baseado em um caso real. Após sofrer um AVC, Eva, uma filósofa, disse ao filho e aos médicos que alguns princípios eram, para ela, inegociáveis – a autonomia era um deles.

Durante o tratamento, constatou: “Viver assim não vale a pena”. A dor de se ver incapaz, por exemplo, de escovar os dentes era insuportável. O AVC havia “esmigalhado sua identidade”. Desejando encerrar a vida de forma discreta e pacífica, ela decidiu viajar à Suíça para poder tomar a substância que a levaria a um sono profundo e ao fim.

Em imagens. A proximidade da morte foi tematizada pelos diretores Costa-Gavras, de 92 anos, em Uma Bela Vida, e Pedro Almodóvar, de 76, em O Quarto ao Lado
– Imagem: Warner e Filmes Estação

Era como se Eva, nas palavras de Silva, “estivesse escrevendo um texto ao contrário, apagando linha por linha, até sobrar só a folha em branco, só o espaço vazio”. Não havia alegria no processo, mas tampouco desespero. Sua angústia não era morrer, e sim continuar vivendo daquela forma. Quem a acompanhou foi o filho, Guido.

É justamente em torno da busca por um acompanhante para a prática da eutanásia que gira o romance de Sigrid Nunez. O Que Você Está Enfrentando constrói-se a partir do pedido de Martha, paciente oncológica, para que a amiga Ingrid, a narradora, se hospede no quarto ao lado enquanto ela se prepara para tomar o comprimido letal.

Antes de chegar a Ingrid, Martha havia procurado outras amigas – mais próximas até –, mas todas recusaram. “Não importa o que aconteça, (as pessoas) querem que você continue lutando”, diz a personagem. “Existe uma maneira certa e uma errada de agir. Um jeito forte e um fraco. O caminho do guerreiro e o do desistente. As pessoas devem entender que esta é a minha forma de lutar.”

Seu maior desejo passa a ser a paz; seu maior medo, a dor. “Sei que estou morrendo, mas, quando fico aqui pensando, sobretudo à noite, muitas vezes é como se eu tivesse todo o tempo do mundo”, diz ela. A amiga pensa: “Deve ser a eternidade”. ­Ingrid, que é escritora, lembra-se de ­Kafka: “O sentido da vida é que ela termina”.

Se, no relato sobre Eva, o filho compreende a mãe, na ficção há espaço para o desconforto da amiga convocada para uma missão que, no contexto retratado, é ilegal.

“As pessoas devem entender que esta é a minha forma de lutar”, afirma a personagem criada de Sigrid Nunez

Na adaptação cinematográfica de ­Almodóvar, a criminalização da eutanásia ganha contornos mais fortes que no livro. O filme, estrelado por Tilda Swinton (Martha) e Julianne Moore (Ingrid), se passa nos Estados Unidos, onde o direito à morte é restrito. A personagem, inclusive, compra o comprimido na dark web.

No roteiro, são traçados paralelos entre a criminalização da eutanásia e o conservadorismo e o extremismo religioso.

Segundo Adriano Silva, até 2024 a Morte Voluntária Assistida (MVA) era permitida em 14 países. Ele observa que “a imensa maioria dos casos de MVA envolve indivíduos com mais de 70 anos ou em situa­ções de qualidade de vida inadmissível”. O Quarto ao Lado, embora seja sobre amizade e afeto, é também um gesto em defesa do direito à dignidade diante do fim.

Tilda Swinton, em entrevistas, afirmou tratar-se de uma obra “sobre viver” mais do que “sobre morrer” – uma história sobre decidir como sair do “palco da vida”.

Como explica o autor de Quando Eva Decidiu Morrer, na Suíça – onde a MVA autoadministrada é permitida desde 1942, mas a administrada por terceiros é proibida – há três critérios para o consentimento do ato: terminalidade, sofrimento e autodeterminação. Já o conceito de medicina paliativa, diz ele, significa “nem acelerar nem adiar a morte”. Trata-se, sobretudo, de focar no conforto do paciente.

E é disso, do paliativismo, que trata o luminoso Uma Bela Vida, que acompanha o filósofo Fabrice Toussaint (Denis ­Podalydès) em sua reflexão sobre a finitude, guiado pelo médico Augustin (Kad ­Merad), especialista em cuidados paliativos.

Por meio de uma colagem de histórias de doença, vida e morte, Costa-Gavras reflete sobre as formas de viver – que, inevitavelmente, impactam nos modos de morrer. O roteiro incorpora referências a ­Balzac, Mauriac, Foucault, Prévert e Platão, conduzindo, com leveza, um debate filosófico. Se, no século XIX, Freud nos ajudou a enfrentar o tabu do sexo, talvez seja hora de encararmos o tabu da morte.

Costa-Gavras, como Almodóvar, posiciona-se diante do tema por meio de seus personagens. Dados populacionais e de saúde pública aparecem em uma entrevista fictícia que tem algo de manifesto: com o prolongamento da vida, a morte assistida deveria tornar-se assunto de governo.

Os cuidados paliativos, embora distintos, cruzam-se com a eutanásia na discussão sobre o que seria, para cada um, a morte desejada. Se há diferentes perspectivas sobre o que é uma vida plenamente vivida, por que teríamos todos a mesma ideia do que é a melhor morte?

Outro livro lançado este ano, Viagens a Terras Inimagináveis (Todavia, 256 ­págs., 99,90 reais), da psicóloga Dasha Kiper, aborda os cuidadores de pacientes com demência. Segundo ela, mais de 55 milhões de pessoas no mundo convivem com algum tipo de demência. A expectativa é que esse número quase triplique até 2050.

Em texto. Viagens a Terras Inimagináveis, O Dia em Que Eva Decidiu Morrer e O Que Você Está Enfrentando são alguns dos livros a tratar das ambiguidades do final da vida

O Alzheimer é o tipo mais comum. Nos Estados Unidos, em torno de 6,5 milhões de pessoas apresentam sintomas da doença, e há cerca de 16 milhões de cuidadores, entre familiares e profissionais.

A experiência clínica mostrou a Dasha que todos que convivem com o declínio cognitivo de alguém se tornam parte dele. Ao viver essa realidade sombria, os cuidadores tornam-se, eles mesmos, “vítimas invisíveis” da doença. A psicóloga relata ter visto muitos sentirem raiva ou a impressão de serem manipulados.

Ao apontar, de forma sensível, as ambiguidades dessas relações, Viagens a Terras Inimagináveis desvenda mecanismos cerebrais comuns a todos nós. A proximidade da morte ou da perda da identidade – por um dano cerebral ou cognitivo – nos faz sentir emoções que nunca imaginamos experimentar. O fim, dizem quase em coro esses autores, expõe as profundezas da solidão e das dúvidas humanas.

Cabe lembrar que, antes, a eutanásia já foi muitas vezes representada no cinema, em filmes como Mar Adentro (2004), de Alejandro Amenábar, e Coração Mudo (2014), de Billie August. Na Suíça, essa relação é estudada inclusive na academia. A Universidade de St. Gallen mantém o projeto AssistedLab, que investiga as representações do suicídio assistido na cultura popular e no discurso público.

A professora Anna Elsner, que lidera o grupo, sugere que as representações artísticas não só refletem, mas moldam as atitudes sociais e políticas em relação à MVA. Ao humanizar as questões e apresentar dilemas éticos complexos, essas obras incentivam o debate público e podem influenciar decisões políticas.

Como escreve Adriano Silva, “a morte não é o avesso da vida – ela é o seu final”. Para traduzir os sentimentos que brotam nesse fim da linha e as palavras-chave desse debate – autonomia, autodeterminação e dignidade –, a narradora de O Que Você Está Enfrentando recorre a William Faulkner: “Amor e honra e piedade e orgulho e compaixão e sacrifício”. •

Publicado na edição n° 1385 de CartaCapital, em 29 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Modos de partir’

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