Cultura
Modernismo, presente
O conjunto de textos reunidos no volume ‘Três Poetas Moderníssimas’ é revelador do quanto a energia do movimento ainda circula em nossa época


Três Poetas Moderníssimas, livro recém-lançado pela Editora 34, é um projeto híbrido e complexo: apresenta não apenas poemas e prosas de três escritoras britânicas ligadas à cena modernista – Mina Loy, Hope Mirrlees e Nancy Cunard –, mas também ensaios, perfis biográficos e rigorosas notas de apoio produzidos com alto padrão pelo organizador e tradutor Álvaro A. Antunes.
Mina Loy (1882-1966) estudou Arte em Munique e Paris, atuou como poeta, dramaturga, romancista, atriz e pintora, com períodos de ligação ao Futurismo e ao Surrealismo. Hope Mirrlees (1887-1978) estudou Russo na Escola de Línguas Orientais, em Paris, o que a levou a um percurso misto como tradutora, romancista e poeta. Nancy Cunard (1896-1965), de família rica e aristocrática, envolveu-se com surrealistas e dadaístas, mesclando sua trajetória poética à escrita de panfletos antirracistas e antifascistas.
A edição brasileira bilíngue oferece, de Mina, o poema longo Canções para Joannes (1917), além de oito poemas menores (com títulos como Gertrude Stein e Nancy Cunard) e um estrondoso Manifesto Feminista (1914), que, em uma das linhas diz: “Não é NÃO!” De Hope, temos o impressionante Paris: Um Poema (1920), vanguardista até a medula – texto intenso e fragmentado, carregado de referências às novidades técnicas de sua época. De Nancy, por fim, é apresentado o poema Paralaxe (1925), “radicalmente polifônico”, nas palavras do tradutor, e paradigmático do uso do “monólogo interior” e do “fluxo de consciência” na cena modernista.
Três Poetas Moderníssimas. Mina Loy, Hope Mirrlees e Nancy Cunard. Org. e tradução: Álvaro A. Antunes. Editora 34 (368 págs., 95 reais) – Compre na Amazon
O conjunto de notas, texto original ao lado e comentários, ajuda muito na tarefa de captar a singularidade estética e histórica dos poemas. Os versos de Mina, Hope e Nancy são, frequentemente, irônicos e sarcásticos, às vezes crípticos, carregados de referências a outros textos e à cultura geral das três primeiras décadas do século XX. É o olho de quem pensa, uma lacuna – com palavras florindo atrás dele à espera, como escreve Nancy em Paralaxe.
Com a distância de cem anos, é possível perguntar: algo dessa energia “moderníssima” ainda circula em nossa época? Reconheço a polifonia, a não convencionalidade, a fragmentação e a atenção ao presente em um livro como Notas Ordinárias, de Christina Sharpe, que apresenta uma instigante experimentação com a forma e a linguagem, sem deixar de lado a combatividade ética e a denúncia contra o racismo.
Outra ocorrência dessa energia está no livro Os Mortos Indóceis, de Cristina Rivera Garza, lançado recentemente pela WMF Martins Fontes. A escritora mexicana, mesclando teoria, autobiografia e ensaio, repensa a noção de “necropolítica” com a ideia de que os mortos devem ser tomados como “indóceis”: não podem sobreviver apenas como “letra morta”, como matéria canônica amorfa, e sim como agentes de memória social, atuantes na leitura e na escrita dos vivos.
Não há dúvida de que foi isso que Álvaro A. Antunes fez com Mina, Hope e Nancy: Três Poetas Moderníssimas é um livro que canaliza a potência criativa do passado em direção ao presente, trazendo à tona, com riqueza de detalhes, a obra de escritoras que ainda têm muito a mostrar. “Desdenhe das leis da geometria sólida”, escreve Mirrlees em Paris: Um Poema, verso que pode ser lido como um incentivo a leituras futuras – levando-as a uma fuga do convencional e das referências já tão conhecidas. Como completa a poeta, dois versos depois, “Adiante, adiante…”. •
VITRINE
Natureza, Cultura e Desigualdades (Civilização Brasileira, 96 págs., 44,90 reais), transcrição de uma conferência proferida em 2022, é uma ótima introdução ao pensamento do economista francês Thomas Piketty, célebre por suas análises sobre a concentração de riqueza.
Foucault – Loucura, Linguagem, Literatura (Ubu, 288 págs., 89,89 reais) reúne 13 palestras e textos – quase todos dos anos 1960 e 1970, e inéditos – nos quais Foucault entrelaça os temas que dão título ao livro e que foram centrais em sua trajetória intelectual.
A protagonista de Pura Cor (Companhia das Letras, 232 págs., 79,90 reais), da canadense Sheila Heti, é “uma mulher semelhante a um pássaro chamada Mira” que “adoraria ter nascido do ovo de um urso”. É por meio do impalpável que a autora vai, nesta ficção, erigir sua visão do real.
Publicado na edição n° 1333 de CartaCapital, em 23 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Modernismo, presente’
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