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Mistura de ritmos de Antônio Carlos & Jocafi continua a ser redescoberta pelas novas gerações

Passadas cinco décadas, a dupla volta a estar muito além de ‘Você Abusou’

Ontem e hoje. Na década de 1970, os compositores conheceram o sucesso com Você Abusou. Agora, acabam de gravar com o líder do BaianaSystem
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Sempre que perguntam para Stevie Wonder qual a melhor recordação da sua primeira visita ao Brasil, no início dos anos 1970, o astro norte-americano entoa alegremente Você Abusou, de Antônio Carlos & Jocafi­ (Você abusou, tirou partido de mim, ­abusou…). Faixa de Mudei de Ideia, disco de 1971 que marcou a estreia da dupla baiana, a canção ganharia, ao longo do tempo, cerca de 200 regravações. Teve versões em vozes tão distintas quanto as da cubana Celia Cruz, dos sambistas Jorge Aragão e Diogo Nogueira, e da ­jazzista Ella Fitzgerald, que a colocou num ­medley com outras músicas brasileiras.

A canção, ao mesmo tempo que lhes deu fama, acabou por reduzi-los. “Nos transformaram em sambistas, algo que nunca fomos”, diz Antônio Carlos. O desabafo não é sinal de mágoa, mas simples constatação. O mesmo álbum que traz Você Abusou tem, além de outros dois sambas, canções influenciadas pela música negra americana, tropicália, rock e ritmos afro-brasileiros. “As rádios preferiam os sambas às nossas misturas musicais”, diz Jocafi. Hoje em dia, são exatamente os amálgamas rítmicos que estão conectando os baianos com uma nova geração de instrumentistas e cantores.

Antônio Carlos & Jocafi estão juntos há 52 anos e nunca pararam de produzir e de se apresentar ao vivo. Embora muitas vezes estejam longe da mídia, sempre surge uma geração de rappers e artistas da nova geração da MPB e do pop nacional para colocá-los no lugar de destaque que merecem. Em 2003, Marcelo D2 sampleou Kabaluerê, quatro anos atrás, a cantora baiana Xênia França fez uma releitura de Tereza Guerreira e, mais recentemente, Céu gravou o samba ­Teimosa. “Há uma manemolência, algo dolente e ao mesmo tempo moroso na poesia rítmica e melódica dos sambas deles, que me atrai profundamente”, diz a cantora.

Neste momento, quem os está puxando de volta para os holofotes é Russo­ ­Passapusso, vocalista do BaianaSystem, o mais criativo grupo em atividade da cena pop nacional, conhecido pela mistura de ritmos. Em 2022, eles lançarão juntos Alto da Maravilha. Passapusso conheceu a dupla antes de se dedicar à carreira artística, quando trabalhava numa loja de discos em Salvador. À altura, encantou-se por Ossos do Ofício (1976), o álbum mais sambista de Antônio Carlos & Jocafi. “Me apaixonei por versos coloquiais como Se Deus desse asa a cobra tirava o veneno”, diz.

Depois, encontrou-os no camarim de um programa de tevê, em Salvador, e a conexão foi imediata. Em 2019, a dupla participou de um disco lançado pelo BaianaSystem e, antes da pandemia parar o mundo, engendraram a criação de um álbum inédito. Se o isolamento inviabilizou os planos de uma gravação coletiva, impulsionou, por outro lado, a produtividade do trio, que, ao longo dos últimos dois anos, compôs mais de 50 canções, algumas delas via celular.

No próximo ano, os artistas baianos vão para Los Angeles gravar um CD pelo selo Jazz is Dead

Meses atrás, eles finalmente se fecharam em um estúdio, no Rio, de onde saiu um trabalho ambicioso, que reveste o canto da dupla com uma aura de modernidade. “Meu filho disse que meus vocais estão diferentes, mas melhores”, diz, com orgulho, Jocafi.

Outro projeto de fôlego previsto para 2022 é Afro Funk Brasil, que traz releituras de canções da dupla, privilegiando aquelas de raízes africanas. No projeto, eles serão acompanhados pela Orquestra de Violões do Forte de Copacabana, uma parceria da ONG Instituto Rudá com o Fórum de Cultura, empresa de Antônio Carlos. A dupla dá aulas para os jovens de comunidades carentes da região.

Em junho do próximo ano está prevista uma viagem para Los Angeles, onde vão gravar um álbum pelo selo norte-americano Jazz is Dead, especializado em hip-hop e na valorização de artistas adotados por várias gerações de rappers, e fazer dois shows.

Os caminhos de Antônio Carlos Marques Pinto e José Carlos de Figueiredo se cruzaram no fim da década de 1960. Presença constante nos festivais de música, ambos eram rivais. Quem os uniu foi o maestro e agitador cultural Carlos Lacerda, diretor musical da Itapoan, primeira tevê da Bahia. Ele achou que os dois meninos se dariam muito melhor juntos do que competindo.

A dupla, desde o nascimento, caracterizou-se pela inclusão de ritmos afro-brasileiros em suas composições. “Nasci na mesma rua de Dona Carmen, herdeira de Mãe Menininha do Gantois”, explica Antônio Carlos. Jocafi, por outro lado, cita também a influência da música popular, escutada em alto-falantes espalhados pelo bairro baiano de Cosme de Farias, onde foi criado.

A combinação dessas culturas – temperada pela farta percussão cubana e pela manha dos sambas de Mário Reis – criou uma sonoridade particular, que demorou para ser compreendida. Outra particularidade dele foi trazer para a língua musical gírias como “presepada”, “breguetes”, “rebocado” e “piripicado”, proferidas na região do Mercado Modelo, em Salvador.

A cantora Maria Creuza, então casada com Antônio Carlos, foi, por muito tempo, a principal intérprete da dupla: defendeu Festa no Terreiro de Alaketo (só de Antônio Carlos) no Festival da Record, em 1968, e formou uma simbiose com a dupla. Passadas cinco décadas, a dupla Antônio Carlos & Jocafi volta a estar muito além de Você Abusou. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1187 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: REDES SOCIAIS E FÓRUM DA CULTURA

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