Cultura
Microcosmo das nossas hipocrisias
Após dez anos sem ser traduzida no Brasil, Marie NDiaye ressurge com uma narrativa na qual o leitor é levado a desconfiar das intenções dos personagens


Assim que Gilles Principaux entra no escritório da dra. Susane, ela se convence de que se trata da mesma pessoa por quem, 32 anos atrás, se deixara encantar. Mais que isso: ela aposta que aquele homem resolveu contratar seus serviços de advocacia porque, sim, a conhecera quando eram ele um adolescente e ela uma criança.
No momento em que se inicia a narrativa de A Vingança É Minha, Principaux, um homem muito rico, acaba de ser atingido pela tragédia: sua mulher, Marlyne, matou os três filhos do casal, e ele quer que dra. Susane a defenda.
Susane é o sobrenome de uma advogada de quem pouco se sabe para além da superfície. Ela tem 42 anos, dirige um Twingo velho e amassado e, desde a infância, acha que sua única fonte de beleza estava nos cabelos que, aos 10 anos, para desolação do pai, cortou curtíssimos.
A partir do (re)ssurgimento de Principaux, Marie NDiaye desenvolve uma intriga que, na França, foi chamada por algumas críticas de antifeminista. Não se pode dizer, no entanto, que o livro, embora com algo de thriller, não ecoe outras obras de Marie, autora que, ao ganhar o Goncourt, em 2009, foi aclamada como uma feminista negra.
Três Mulheres Fortes, o vencedor do prêmio, apresenta uma advogada que se vê às voltas com a defesa de um assassino e tem um personagem com o mesmo nome do ex-companheiro de dra. Susane, Rudy. Já Coração Apertado, seu primeiro livro traduzido no Brasil, lida, assim como A Vingança É Minha, com os terrores escondidos no cotidiano trivial.
Fazia, inclusive, uma década que Marie NDiaye, que estreou na literatura aos 17 anos, em 1985, não tinha um livro lançado no Brasil – os dois primeiros saíram pela extinta Cosac Naify. Só por isso, a edição de A Vingança É Minha pela Todavia já seria bem-vinda.
Mas a obra, além de nos reconectar à prosa fluida da premiada escritora, funciona como uma peça a ser encaixada no mosaico de obras que, na literatura ou no cinema, têm refletido sobre a perturbação contemporânea a partir de crimes supostamente praticados por mulheres.
Dra. Susane, que emprega uma imigrante para limpar sua casa porque quer, a seu modo, “fazer o bem”, e mantém uma relação disfuncional com os pais, o Sr. e a Sra. Susane, é tanto uma vítima da violência de gênero e de um sistema de classes quanto uma anti-heroína movida por obstinações duvidosas.
Por meio dessa personagem e de um conjunto confuso de vozes narrativas das quais somos levados a desconfiar, Marie NDiaye, sem deixar de escancarar as opressões, busca, de forma delicadamente perturbadora, retratar as hipocrisias abrigadas sob as boas intenções.
Publicado na edição n° 1306 de CartaCapital, em 17 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Microcosmo das nossas hipocrisias’
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