Cultura

Michael Jackson e o poder do abuso sobre vítimas e famílias

Filme polêmico sobre o rei do pop retoma a questão: é possível separar a arte do artista?

Apoie Siga-nos no

Wade Robson acabara de nascer quando foi lançado o disco que iria convulsionar sua vida; e tinha menos de 1 ano quando o vídeo com a música-título chegou à MTV. Thriller, o álbum, do fim de 1982, seria o mais vendido pela indústria fonográfica em todos os tempos. O videoclipe, de 12 minutos, continua sendo igualmente o recordista em exibições. Nos anos 80, e mesmo depois, Michael Jackson reinava, com energia pulsante, como o ídolo maior do pop. Wade Robson preparava-se para dar os primeiros passos no seio de uma família de classe média na remota Brisbane, estado de Queensland, na Austrália.

Robson tem hoje 36 anos, é coreógrafo, casado, tem um filho, mora na América e é um dos dois protagonistas do documentário capaz de demolir de vez a reputação de seu antigo ídolo e “protetor”. Bem que sua intuição infantil lhe dizia que Michael era “meio esquisitão”, o que, a distancia, não empanava sua paixão por hits como Thriller, com aquele vídeo pululando de zumbis e vampiros, e todo o repertório do mais solitário queridinho das multidões. O garotinho Wade acabou conhecendo Michael num tour dele pela Austrália. Tudo o que aconteceu daí para a frente, ele narrou com minúcias gráficas e detalhes obcenos no documentário Leaving Neverland, que a HBO produziu e o britânico Dan Reed dirigiu.

No documentário, Wade faz um candente dueto com James Safechuck, 40 anos, norte-americano da Califórnia, numa narrativa bastante similar. A câmera fixa alterna entre um entrevistado e outro e há momentos em que fica impossível distinguir o que um diz do outro. As embaraçosas revelações de ambos – embaraçosas é dizer o mínimo – convergem, com tremenda verossimilhança, na direção de um personagem patológico, dissimulado numa infantilidade doentia, sitiado na solidão de sua Terra do Nunca, desamparo que esse Peter Pan lúbrico busca mitigar com a companhia de garotinhos de 7, 8 anos.

Michael com Wade Robson e James Safechuck, seu repertório de “protegidos” mirins.

Os depoimentos de Wade e James asseguram que o mimimi carinhoso do astro, aquela voz cândida e afeminada tão diferente do timbre que incendiava os palcos, eram recursos artificiosos para ganhar a confiança das crianças, encantá-las com a surpresa de tamanha intimidade com o sumo pontífice do pop, driblar qualquer desconfiança por parte da família, para, enfim, submeter os “afilhados” aos mais abjetos caprichos sexuais. A suspeita de que Michael Jackson era um pervertido, o que chegou a acionar ainda em vida a polícia de Los Angeles, era pouco. O autor de Bad foi um artista de gênio e uma criatura abominável (os voyeurs podem regalar-se com www.youtube.com/watch?v=VXW1pJWYbY4). Dá para separar o talento musical da sombria biografia de anjo caído?

A omissão interesseira dos pais das vítimas não significa que o crime é perdoável

O documentário de quatro horas está fazendo um estrago entre os fiéis da Jacksonmania, mas vozes da corporação musical se levantaram em defesa do ídolo, morto de overdose de medicamentos em 2009. A cantora Diana Ross postou: “Parem com isso, em nome do amor”. Barbra Streisand protestou, atacando quem acusou: “Eles estão aí, ninguém morreu, né?” Barbra levou um puxão de orelhas de Dan Reed e acabou se retratando. Macaulay Culkin, o ator mirim de Esqueceram de Mim e outro dos bibelôs que o cantor gostava de exibir em público, jura que nunca foi assediado sexualmente.

O argumento de quem ainda pretende ouvir Billie Jean sem culpa e sem remorso é menos afirmativo e mais interrogativo – aquele típico argumento de quem questiona a vítima a fim de acobertar o agressor. Por que só agora, tanto tempo depois? Por que só agora, quando Michael não pode se defender? Michael de fato não pode, mas uma brigada de advogados contratados pela família já se movimenta para tentar resgatar a reputação perdida.

Clássica justificativa para a defesa do criminoso do sexo é arrastar as presas para o território da cumplicidade – afirmar que o delito, ou, que seja, o prazer é compartilhado de parte a parte. O fato de o australiano Wade ter mantido com o ídolo um relacionamento de cinco anos parece confirmar a hipótese. Mas é bastante improvável que aos 7 anos, quando conheceu Jackson, uma criança tivesse tido a iniciativa própria de avançar, do fascínio pelo astro, para jogos eróticos tipo masturbação e sexo oral. O “professor” sempre admoestava o pupilo: nada podia ser revelado, o silêncio era a prova do amor.

Amor, aliás, é a palavra que tanto Wade quanto James usam para descrever o que na verdade era uma submissão aos artifícios fantasiosos do superstar: de uma galeria de balas e chocolates a passeios no jatinho de Michael, de um figurino inspirado no astro a, claro, hospedagem naquele reino de fábula erigido num enorme território de 1.100 hectares propositalmente isolado, imune a bisbilhoteiros, em Santa Bárbara, Califórnia, ao norte de Los Angeles.  

O suborno milionário, que os infantes entendiam como inocentes provas de carinho, luxos e caprichos que só o dinheiro podia comprar, pune a omissão das famílias, ou, no mínimo, sua indiferença, diante de perigo tão visível. Esta era uma característica única do affair Michael Jackson: os pais não viam o que não queriam ver.

Os Robson de Brisbaine e os Safechuck da Califórnia defendem-se, no filme, com uma inocência blasée. A mãe de Wade conta que sentiu “um leve desconforto” quando excursionava com o marido e a filha pelo Grand Canyon, tendo deixado o filho sozinho nas mãos – e na cama – de Michael Jackson lá nos desterros da Terra do Nunca. A negligência interesseira das famílias, de todo modo, não justifica o crime.

O jornal The Guardian perguntou aos seus leitores se iriam continuar ouvindo os hits do astro, como se nada tivesse acontecido. Sob o impacto das revelações repugnantes, 87% responderam que não. Pode ser que, pouco a pouco, a maioria se reconcilie com a obra, ainda que rejeite o artista. Não existe uma fórmula universal para se resolver o dilema – o nível de desconforto é eminentemente pessoal. Há pessoas de índole democrática que leem os poemas de Ezra Pound e os romances de Louis-Ferdinand Céline, dois entusiastas no nazifascismo. Richard Wagner acabou quase unanimemente absolvido, após ter sido apropriado pela ideologia hitlerista de superioridade germânica.

No caso brasileiro, talvez leve algum tempo para se desculparem colaboracionistas das trevas como Fagner, Zezé Di Camargo, Nana Caymmi e outros. Mas, pensando bem, quem precisa deles?

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.