Cultura

Meu adorável cemitério

O que será que leva um jovem de vinte e dois anos de idade a comprar um túmulo?

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Os mortos rondavam minha casa, já contei isso aqui. A cada momento sentíamos que um defunto ia aparecer num cômodo. Na sala, na copa, na cozinha, no banheiro, no quartinho dos fundos, no escritório do meu pai. Já contei também que minha mãe sonhava diariamente com pessoas mortas e que dormia com a cabeça coberta por um grosso cobertor Parahyba. Ela tinha certeza que se abrisse os olhos no meio da madrugada, enxergaria uma pessoa morta.

Já contei também da obsessão do meu pai em catalogar mortes. As pessoas iam morrendo e ele anotando num caderno de capa dura o dia e a hora do falecimento. Esse caderno ficava em cima da sua escrivaninha e era consultado todos os dias. Ele tinha um controle absoluto de todos aqueles que haviam nos deixado.

Belo Horizonte perdia um pouco seu ar provinciano naquele 1970 e começava a colocar suas asinhas de fora. Os primeiros engarrafamentos de Fuscas, Aero-Willys, Simcas e Dauphines enchiam de orgulho os moradores que sentiam dia após dia a cidade crescer, virar uma metrópole. O asfalto cobria os paralelepípedos, os prédios substituíam os casarões, árvores centenárias tombavam em nome do progresso e a coqueluche era a primeira lanchonete vendendo sunday de marsshmallow e milk-shake de morango.

Belo Horizonte tinha dois cemitérios com nomes bem sugestivos: Bonfim e Saudade. Com a população crescendo e também desaparecendo, os cemitérios começaram a superlotar e o povo não tinha mais onde cair morto, apesar do trocadilho.

Foi então que alguém muito vivo, nunca soube quem, resolveu construir um novo cemitério na cidade. Nos moldes americanos, o Parque da Colina não teria aqueles mausoléus enormes de mármore, cheio de ruelas e estátuas. O projeto previa um imenso gramado com pequenas cruzes brancas, uma coisa bem clean, bem moderna, diferente, bem chique.

Os anúncios na televisão e nos jornais mexeram com a vida da cidade. Virou programa de fim de semana as famílias visitarem o andamento das obras. Eu me lembro muito bem quando o vendedor de túmulos bateu na porta da minha casa. Ele trazia nas mãos um mapa do que seria o empreendimento e prospectos coloridos muitos bonitos, tudo em papel couché. Não sei se meu pai foi o primeiro a comprar um túmulo no Parque da Colina, mas foi um dos primeiros.

Além de cultuar os mortos, ele gostava de brincar com a morte. Fez questão de escolher um lugar bem localizado e deixou claro para o vendedor.

– Quero um túmulo que fique debaixo de uma árvore e bem perto do bar.  Quero muita sombra e um botequim perto porque senão meus amigos de copo não irão ao meu enterro, muito menos me visitar.

Pensando bem, o meu pai era novo ainda quando comprou o túmulo dele, cinquenta e poucos anos e algumas décadas pela frente para viver. Mas, como bom mineiro e precavido, fez questão de garantir, desde então, um lugar onde pudesse passar não uma temporada mas uma eternidade.

Até ai tudo bem. Mas o mais curioso e o que me leva estar aqui hoje contando essa história, foi o fato do meu irmão, com apenas 22 anos, depois de ver o meu pai assinando aquela papelada que o vendedor de túmulos levou para ele rubricar e assinar, resolveu também comprar um para ele. Eu, dois anos mais novo, quase morri de susto. Achei que era brincadeira dele mas era verdade.

Naquele 1970 o meu irmão já trabalhava e ganhava um dinheirinho bom. Ele fez as contas, pensou, pensou e viu que dava para pagar todo mês aquele grosso carnê de mensalidades do Parque da Colina.

Os anos foram passando e um dia, feliz da vida, meu irmão quitou a última prestação. A partir daquele momento ele era proprietário com escritura e tudo de um belo túmulo que, na verdade, era um pedaço de terra com uma grama verdinha por cima.

Quarenta e tantos anos depois, o túmulo está lá, novinho em folha. Soube que valorizou uma barbaridade. Hoje vale mil vezes o preço que ele pagou naquele inesquecível ano em que o Brasil foi tricampeão com Gerson, Rivelino, Pelé e Tostão no ataque.

De tempos em tempos o meu irmão vai lá no Parque da Colina conferir se está tudo certinho, marcar território e pagar o condomínio. Da última vez que foi, a atendente perguntou:

– Mas o senhor tem esse jazigo há tanto tempo e nunca usou?

O meu irmão foi rápido e rasteiro:

– E nem pretendo usar tão cedo!

Verdade. Graças a Deus, ele está firme e forte, com a saúde de um touro. Eu também. A única diferença entre eu e ele é que eu continuo sem ter onde cair morto.

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