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Memórias sob a neve

Em novo romance, Han Kang narra um massacre ocorrido na Ilha de Jeju, na Coreia do Sul, na década de 1940

Memórias sob a neve
Memórias sob a neve
Escrita engenhosa. Han Kang ganhou o Prêmio Nobel de Literatura no ano passado – Imagem: Paik Dahuim
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O leitor latino-americano encontra um contexto familiar em Sem Despedidas, novo romance da escritora sul-coreana Han Kang.

Violência de Estado, desaparecidos, torturas e ossadas sem identificação tecem um triste paralelo entre as ditaduras militares sul-americanas e a repressão aos supostos comunistas da Coreia do Sul após a Segunda Guerra Mundial.

A ganhadora do Nobel de Literatura em 2024, aliás, não deixa passar incólume a participação dos Estados Unidos no extermínio de cerca de 30 mil pessoas – somente na Ilha de Jeju – onde se desenrola a trama. A escritora faz questão de registrar como os estadunidenses colaboraram para montar armadilhas que terminaram na morte de crianças e idosos.

Entretanto, se é bem-vindo o exercício de memória, o que torna Sem Despedidas uma obra espantosa é a capacidade da escritora de criar cenas muito sensoriais. Outra característica que garante a excelência literária são as dúvidas plantadas por Han Kang em relação ao que é real e ao que é assombração.

Esse jogo, que leva ao desconforto e à atmosfera onírica, colabora para que o livro tenha certa porção de literatura fantástica – outra aproximação possível com a América Latina, território onde o mágico encontrou solo fértil para germinar.

O romance narra a história de ­Kyung-ha, uma jornalista que se desloca de Seul para a Ilha de Jeju. Sua missão é alimentar, com urgência, uma das aves de estimação da amiga fotógrafa Inseon, que está hospitalizada após cortar o dedo durante o trabalho com marcenaria.

Sem planejamento, Kyung-ha desembarca na ilha e, enquanto caminha até a casa da amiga, enfrenta uma perigosa tempestade de neve. Para piorar tudo, ela está fragilizada por um trauma anterior.

Sem Despedidas. Han Kang. Tradução: Natália T. M. Okabayashi. Todavia (272 págs., 84,90 reais)

No aspecto físico, está fraca por alimentar-se mal; no psicológico, está abalada por algo que não fica claro ao leitor, mas se relaciona com uma pesquisa para um livro.

A descrição do percurso da protagonista na neve remete ao romance Brancura (Fósforo, 2023), do norueguês Jon Fosse, que ganhou o Nobel um ano antes de Han Kang.

A semelhança não se restringe à nevasca que desafia a sobrevivência. Ela estende-se à sensação de pós-morte, como se as personagens estivessem em um limbo que separa o mundo dos vivos e dos mortos.

Depois de instalar-se na casa de ­Inseon, Kyung-ha precisa lidar com a falta de energia elétrica e a estranha aparição da amiga. O elemento fantástico, além da presença de Inseon, que estava supostamente hospitalizada, é seu dedo intacto.

É com a mão sem nenhum machucado que Inseon começa a abrir caixas de arquivos organizados por sua mãe. Nelas estão vários documentos sobre a investigação a respeito do massacre em Jeju, na década de 1940, e o destino de seus entes queridos.

O detalhe do dedo inteiro é uma amostra da engenhosidade de Kang, capaz de criar um ambiente de imprecisão que exige a participação ativa do leitor. Esse detalhe, somado à experiência elucidativa de Kyung-ha diante dos arquivos que revelam a monstruosidade­ do massacre, faz com que o romance tenha um tempo cíclico.

Ao mesclar a memória de um tempo pouco conhecido da história da Coreia do Sul com uma narrativa repleta de efeitos visuais e dúvida, Kang produz mais um ótimo romance. •


VITRINE

por Ana Paula Sousa


Os amores de Fernando Pessoa, tornados versos conhecidos, originaram também muitas correspondências. Esse epistolário romântico, e algo íntimo, foi reunido por Jerónimo Pizarro, com fotos e fac-símiles, no bem cuidado volume Cartas de Amor (Tinta-da-China Brasil, 208 págs., 74,90 reais).

As Aventuras de Pinóquio, como todo grande clássico, é sempre merecedor de novas edições. E nesta mais recente (Maralto,200 págs., 59,90 reais), com nova tradução, o principal atrativo são as ilustrações de Juliana Bollini, que criou imagens que remetem ao mundo dos fantoches.

No breve Influência (Alameda,130 págs., 58 reais), o sociólogo Renato Ortiz, teórico da cultura e da comunicação, destrincha, a partir de seu olhar arguto, o termo influenciador, por ele considerado “no mínimo ­esdrúxulo”, e explora o significado dessas figuras onipresentes no meio digital.

Publicado na edição n° 1376 de CartaCapital, em 27 de agosto de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Memórias sob a neve’

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