Cultura

Memórias de um cinéfilo obsessivo

Em um livro tão divertido quanto desorganizado, Quentin Tarantino conduz os leitores a um passeio por sua intensa educação cinematográfica

Especulações Cinematográficas foi lançado nos EUA logo após a transformação do filme Era Uma Vez Em... Hollywood (acima) em romance – Imagem: Columbia/Sony Pictures e Julian Ungano
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Alguns anos atrás, por motivos de trabalho, visitei uma “convenção de TV cult” em um hotel em Solihull, no centro da Inglaterra, em cujo bar os fãs, todos vestidos como os Klingons, de Star Trek, e Peter Tork, dos Monkees, realizavam um bagunçado concurso de perguntas e respostas.

Parado em uma mesa, o ator de filmes B John Saxon autografava fotos vendidas por 10 libras. Saxon estava ali graças às suas interpretações em Bonanza (1967-1969), O Homem de Seis Milhões de Dólares (1974-1976), A Mulher Biônica (1976), Falcon Crest (1981-1990) etc., mas a humilhação da cena transparecia em cada linha do seu rosto. “Certa vez, fiz um filme com Marlon Brando”, explicou ele, com um suspiro.

Se a estrada tivesse se bifurcado, tudo poderia ter sido diferente. No meio do livro Especulações Cinematográficas, Quentin Tarantino menciona Saxon como uma de suas primeiras opções para interpretar Max Cherry, o desgastado agente de fiança de Jackie Brown (1997).

O papel acabou sendo entregue a Robert Forster, mas esse detalhe sugere uma história alternativa, uma trilha paralela. Indiretamente, lembra-nos de que os filmes são imprevisíveis, definidos tanto por mudanças de roteiro, lances de cara ou coroa e reações do público quanto por qualquer visão autoral singular. Jeff Bridges quase estrelou Taxi Driver. Steve McQueen por pouco não foi o Sundance Kid. Todo filme – grande ou pequeno – carrega os fantasmas dos filmes que poderia ter sido.

Essa ideia nos conduz ao divertido e desorganizado Especulações Cinematográficas, a primeira coletânea de críticas de cinema de Quentin Tarantino. O livro foi lançado nos Estados Unidos logo após a transformação do filme Era Uma Vez Em… Hollywood (2019) em romance.

Tarantino é fascinado pela ciência inexata da produção e promoção de filmes e pelos bastidores dos clássicos. O cineasta gosta de olhar por baixo das coisas e puxar o fio, mostrar como um filme foi montado e como poderia ter seguido outros caminhos. Ou melhor, ele faz isso até o momento em que para. Então seu foco muda, sua atenção gira e ele começa a seguir uma nova linha de pensamento.

Se não fosse por uma combinação de talento e ousadia, o próprio diretor poderia ter passado alguns dias no circuito de convenções da TV cult. Ele é o nerd da locadora de vídeo que encontrou ouro, o jovem fã que virou imperador. Alguns cineastas preferem esconder suas influências – “Sinto-me o inventor do cinema”, disse Werner Herzog. Tarantino, de modo encantador, ostenta as suas, como um Centro Pompidou humano com toda a tubulação à mostra.

ESPECULAÇÕES CINEMATOGRÁFICAS. Quentin Tarantino. Tradução: André Czarnoba. Editora Intrínseca (400 págs., 89,90 reais) – Compre na Amazon

Fiel à sua forma, Especulações Cinematográficas é um passeio pessoal por sua educação cinematográfica, dos reconhecidos pesos pesados de Hollywood nos anos 1970 – Amargo Pesadelo, Rocky e Perseguidor Implacável – até uma coleção de estranhos desconhecidos.

Tarantino presta generosas homenagens ao thriller A Outra Face da Violência (1977), de John Flynn, que, afirma, foi o filme que o fez sentir-se como se tivesse permissão para ser diretor, e a ­Kevin Thomas, ex-crítico secundário do Los Angeles Times.

Ele também dedica um capítulo inteiro a Floyd Ray Wilson, aspirante a roteirista que plantou a semente para Django Livre (2012). “Não sei como (Floyd) morreu, onde morreu ou onde está enterrado”, diz Tarantino. “Mas sei que eu lhe deveria ter agradecido.”

Ao longo do livro, percebe-se que ­Tarantino escreve exatamente como fala: solta uma torrente de informações e opiniões; é alimentado por um entusiasmo incansável e por ressentimentos inexplicáveis; faz perguntas retóricas; e embarca em digressões a todo vapor.

Ele, frequentemente, entra em conflito com os filmes que adora, quase intimidando o roteirista Walter Hill a chancelar suas questões com Os Implacáveis (1972), de Sam Peckinpah. Além disso, sua celebração de Taxi Driver (1976) é quase uma zombaria.

Tendo definido o filme, de forma convincente, como um ­“remake parafraseado” do faroeste Rastros de Ódio (1956), de John Ford, ele não resiste a criticar o que considera uma política racial comprometida e a acusar ­Martin Scorsese de hipocrisia pela postura piegas em relação à violência na tela.

Fico também eu tentado a classificar Especulações Cinematográficas como um remake parafraseado – uma longa extrapolação do trabalho cotidiano de seu autor como cineasta. Assim como os filmes de Tarantino, o livro é indulgente e precisa de edição. Mas é também estimulante, sincero e cheio de vida.

Tarantino gosta de se aprofundar nos filmes, mas, de modo geral, não examina a si mesmo. De qualquer maneira, esta incursão emocionante lança luz sobre seu aprendizado, revelando a educação tumultuada do menino que um dia seria rei.

Tal como Proust e sua ­madeleine, ele se lembra de ser arrastado pela mãe, com seus namorados, para ver filmes ­blaxploitation, de artistas negros, no cine Tower, em Compton, na Califórnia. Recorda a admiração, o perigo e a sensação de provar o fruto proibido e diz ser essa uma experiência que vem tentando replicar desde então. Chegou perto com seus filmes. E chega perto também com este livro. •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1292 de CartaCapital, em 10 de janeiro de 2024.

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