Cultura
Memórias da quebrada
A exposição Racionais MC’s: O Quinto Elemento reconecta o grupo, que completou 35 anos, às suas origens


Há dez anos os Racionais MC’s não lançam um disco de inéditas. Um novo trabalho vem sendo anunciado desde 2022. Mas, em vez do lançamento do que seria o quinto álbum de estúdio em 2024, o grupo de rap optou por comemorar seus 35 anos com a exposição Racionais MC’s: O Quinto Elemento, que fica em cartaz até o fim de maio no Museu das Favelas, no centro histórico de São Paulo.
A mostra, com curadoria de Eliane Dias, empresária do grupo, traz à luz as temáticas da segregação social, da violência e do racismo, abordadas com bastante relevo pelo grupo nos álbuns Raio X Brasil (1993) e Sobrevivendo no Inferno (1997) e, em parte, no Nada Como Um Dia Após o Outro (2022). O quarto álbum, Cores & Valores (2014), é um disco morno, que se distancia da enfática indignação apresentada nos três que o antecederam.
A exposição ressalta o discurso de Pedro Paulo Soares Pereira (Mano Brown), Adivaldo Pereira Alves (Edi Rock), Paulo Eduardo Salvador (Ice Blue) e Kléber Geraldo Lelis Simões (KL Jay), manifesto de revolta e resistência da população periférica. A mostra é dividida em dez espaços que têm, ao fundo, as músicas mais críticas – justamente, as que mais fizeram sucesso – do grupo.
No acesso da entrada à mostra está presente uma citação a Ogunhê, saudação dirigida a Ogum, santo guerreiro de religiões de matriz africana, que abre o mais emblemático disco dos Racionais, Sobrevivendo no Inferno, listado como um dos principais álbuns brasileiros do século XX.
Essa saudação é a mesma feita na gravação da primeira faixa do álbum que traz a canção Jorge da Capadócia, de Jorge Ben Jor – Ogu yê / Peço licença pra cantar, certo. São Jorge, o Santo Guerreiro, é considerado o protetor da banda paulistana. No espaço expositivo, uma estátua de São Jorge simboliza a devoção.
Na área seguinte está a instalação Joker: Chora Agora, Ri Depois, uma referência a Lord Joker, palhaço presente nos shows dos Racionais, interpretado por Jorge Paixão. A exposição traz um depoimento, em vídeo, de Paixão sobre o personagem e exibe sua vestimenta.
A exibição de Joker, afrontoso e sarcástico, começou a ganhar destaque na apresentação dos Racionais na música Da Ponte pra Cá, lançada no álbum de 2002. A simbólica canção de Mano Brown, que traz o verso O mundo é diferente da ponte pra cá, remete às pontes que ficam sobre os rios Pinheiros e Tietê e separam a cidade entre dois lados, um mais rico, outro periférico.
Em busca dessa restituição do caminho percorrido pelo grupo, a exposição tem também um mural dedicado às mães dos quatro artistas, chamado Benção Mãe. Essa sala se conecta de forma direta com o espaço posterior, Ancestralidade, que traz a análise do DNA de cada membro do grupo.
É como se a história dos antepassados, revelada pelos testes de genética, servisse de base à luta deles contra o silenciamento e a marginalização. Porque o que o DNA revela é que o quarteto tem, em sua ancestralidade, a África, continente que pode ser compreendido como o “quinto elemento” do grupo. Mas não se trata só disso.
Sem lançar um disco de inéditas há uma década, o grupo leva suas temáticas ao Museu das Favelas
O quinto elemento, na concepção da exposição, é o próprio grupo Racionais MC’s, que se junta aos quatro elementos tradicionais do hip-hop – MC, DJ, dançarinos e grafiteiros – para fortalecer a cultura do movimento no País.
Mas nem tudo ali é conjunto. Os indivíduos, com suas particularidades, surgem na quinta sala, Universo em Fusão, na qual a vida de cada um deles é revelada por meio de objetos, conquistas, trabalhos pessoais e referências ao passado.
No caso de Mano Brown, por exemplo, vemos os jogos de botão, dos anos 1980, que revelam a paixão de rapper pelo futebol. Há ainda uma carta de Dexter, escrita à mão, da extinta penitenciária do Carandiru, na qual o rapper agradece a Mano Brown pelo fato de ele executar sua música Noite Infeliz nos shows dos Racionais.
E como não poderia deixar de ser, a maior área da exposição, Becos do Som e do Tempo, é dedicada aos quatro álbuns de estúdio, aos três discos ao vivo e aos dois EPs lançados pelos Racionais ao longo de sua história.
No grande espaço, há vídeos com depoimentos, fotos de shows, reportagens, capas de revistas e letras e esboços de músicas escritas à mão em folhas de caderno, além de antigos equipamentos de som usados pelo grupo e suas diversas premiações. O espaço recria a atmosfera teatral e ecumênica dos shows.
Na sétima sala, Conexão, é explorada a visceral relação com os fãs, por meio de cartas recebidas por eles, além de uma menção à escola de samba paulistana Vai-Vai, que, em 2024, fez um samba-enredo inspirado no grupo.
Na sequência, vem a sala Trutas, nome dado em referência a rappers, amigos e fãs mortos durante a caminhada do grupo. O ambiente é cheio de velas e uma das figuras destacadas é Jocenir Prado, que morreu em 2021, aos 71 anos, e é ali identificado como “o pensador por trás da primeira versão de Diário de Um Detento”.
A música, uma das mais simbólicas dos Racionais, foi lançada em Sobrevivendo no Inferno e deu origem a um clipe que também fez história. Jocenir foi um ex-detento do Carandiru que esboçou a canção finalizada por Mano Brown.
Os clipes, inclusive, integram a parte audiovisual da exposição, que inclui ainda minidocumentários, de 12 minutos cada um, narrados pelos membros do grupo – os dois melhores são aqueles protagonizados por KL Jay, mais autêntico, e Mano Brown, sempre crítico.
É como se a exposição, ao dar forma ao passado, reforçasse o papel da música como elemento de tomada de consciência social, algo que sempre foi a marca dos Racionais MC’s. Que ela seja uma prévia do que virá no próximo disco. •
Publicado na edição n° 1342 de CartaCapital, em 25 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Memórias da quebrada’
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