Cultura

“Melodia foi o homem mais lindo que conheci. Éramos opostos”

Parceiro de Luiz Melodia, Renato Piau lembra fatos com o músico

Renato Piau e Luiz Melodia (Foto: Arquivo pessoal)
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Em um estúdio na Glória, no Rio de Janeiro, a ativista e jovem cantora Doralyce ensaiava com músicos de idade semelhante, com a exceção do guitarrista. Na execução desse instrumento, Renato Piau dedilhava as cordas com a competência de meio século de estrada.

Piau conheceu Doralyce num tributo a Luiz Melodia e depois produziu seu primeiro trabalho, em 2017. Desde então o músico acompanha a cantora, que planeja seu terceiro registro fonográfico.

Renato Piau viajou de Teresina, no Piauí, onde nasceu, para o Rio no verão de 1971, permanecendo até hoje na cidade que ele via pelos filmes e o fascinava. Tinha 16 anos e na sua chegada se instalou no Cachambi, na casa de conhecidos de sua cidade de origem.

No começo, tocou guitarra em alguns conjuntos, com Os Selvagens, cujo sucesso era a versão em português de “Ohh baby baby, it’s a wild world”, até hoje na programação da rádio Antena 1 na voz de Cat Stevens.

Carreira começou com grandes músicos

Até quem um dia, um outro grupo que tocava, o Faia, a pedido do produtor Jorge Salomão, irmão do poeta Waly Salomão (1943-2003), fez uma audição para Luiz Gonzaga. O Rei do Baião acabou contratando somente Renato Piau.

“Eu tinha 18 anos. Tive a honra de meu nome estar em um disco dele”, diz. O trabalho em questão é o Luiz Gonzaga ao Vivo Volta para Curtir.

Daí em diante, foi um pulo para conhecer outros nomes, como Sérgio Sampaio, com quem acompanhou também, assim como Tim Maia, Raul Seixas e muitos outros.

Além de parceiros de composição, como Sergio Natureza, Arnaud Rodrigues e Chico Anísio (os dois últimos formaram com Piau a banda satírica Baiano e os Novos Caetanos).

Mas foi com Luiz Melodia que Piau teve a sua história musical profundamente marcada.

Os dois se conheceram nesses saraus musicais na casa de amigos em comum. Piau lembra que adorava ver Melodia tocar a música Surra de Chicote, que depois virou sucesso.

Naquela época, Gal Costa havia gravado Pérola Negra, de Luiz Melodia. Mas o garoto do Estácio ainda não havia feito sequer um disco.

O primeiro registro veio em 1973. Renato Piau conta que Melodia, ele e banda ficaram confinados três meses em uma casa em Jacarepaguá paga pela gravadora para fazer o disco.

“Não tinha um botequim por perto, nada”, lembra. “Melodia não tinha um centavo nem eu. Íamos de fusca ao estúdio em Botafogo e voltava”.

Desse confinamento saiu um dos discos referência da música brasileira, o Pérola Negra, de Luiz Melodia. As fotos da contracapa do LP são eles no tal lugar onde a gravadora os colocou na Zona Oeste do Rio.

Sumiço

Um contratempo, porém, levou Piau a morar em Brasília em 1974 (voltando ao Rio somente em 1976). Na ocasião, a mãe de seu filho, que estava para nascer, morava na capital federal e ele foi para lá dar a devida assistência. Hoje, ele já é avô.

Não demorou muito para Luiz Melodia o encontrá-lo em Brasília por conta de um show indicado pelo próprio Piau. A amizade se fortaleceu muito ali, embora Melodia tenha dado sumiço quando desembarcou na capital federal, indo para o hotel já na alta madrugada, deixando Piau sem saber se o cantor tinha ido mesmo à cidade.

“Ele bateu na minha casa às 3 da manhã perguntando onde era o hotel”, para o alívio de Piau. O guitarrista e violonista não foi o primeiro a me contar um sumiço de Melodia.

Ao participar de um show no Teatro Castro Alves, em Salvador, com o Bendegó, Kapenga, integrante do grupo de atuação nos anos 1970 e 80, me relatou que Melodia largou o palco no meio da apresentação e foi encontrado depois ali perto, bebendo em um bar – destino provável também no sumiço de Brasília.

Ressalta-se que tanto Piau como Kapenga contaram as histórias aos risos.

Mas ainda na capital federal os dois se divertiram. “Fomos ver o filme O Exorcista às 3 da tarde. Quando saímos do cinema, pegamos um na mão do outro e nos entreolhamos: o que vamos fazer? Estávamos morrendo de medo”.

Depois vieram outros discos e muitos shows de Melodia com Piau sempre ao lado.

Discos solos

Em 1995, Renato Piau lançou seu primeiro trabalho solo pelo seu projeto Guitarra Brasileira. Na primeira prensagem, com 17 faixas, 15 eram instrumentais. As duas cantadas foram interpretadas por Luiz Melodia. Havia também uma epígrafe do poeta Manoel de Barros no disco.

“Gravamos a música Fadas (Melodia). Ela havia sido lançada no disco Mico de Circo (1978) de Melodia. Ficava na última faixa do LP, com arranjo diferente. Mas ela não tocou muito. Mas com arranjo no meu disco, ela cresceu”.

A música virou um sucesso a partir do disco de Piau, e Melodia a incluiu no repertório de shows.

A outra música cantada no disco foi Me Beija (Melodia, Piau e Tureko). No disco de Piau, a música tinha versão instrumental e versão interpretada. “Melodia não gostava do título dessa música. Mas gravou. E ela só tem no meu disco”.

Piau conta que Melodia dava títulos “fantásticos” às suas composições. A música Congênito (“Mas o tudo que se tem / Não representa nada / Tá na cara / Que o cara tem seu automóvel”), por exemplo, não tem nenhuma citação do título na letra.

O segundo disco solo de Piau foi Blues de Piauí (2003). Melodia não participa, mas Piau gravou Estácio Eu e Você de autoria do parceiro inseparável: “Fiz um arranjo jazzístico que gosto muito”.

20 anos do acústico

Um dos discos de maior vendagem de Luiz Melodia foi um registro feito em duas noites de show no Teatro Rival, no Rio. O disco com a denominação de acústico tinha repertório de sucessos do cantor e completa 20 anos de lançamento.

O disco contava apenas com os violões de seis cordas de Piau e de Perinho Santana (falecido em 2012). Trata-se de uma aula de execução do instrumento.

Os arranjos desse disco feitos pelos dois violonistas e Melodia praticamente deram registro definitivo à obra de destaque do cantor.

“Eu já fazia muitos shows só no violão com Melodia. Mas tivemos a ideia de chamar o Perinho. Fizemos os arranjos coletivamente. Nesse trabalho, Melodia às vezes ficava de maestro com a gente tocando. O disco foi um sucesso estrondoso”.

Nesse disco, duas composições de Piau e Melodia entraram: Cuidando de Você e a famosa Cara a Cara (“Quando vejo você / De calcinha preta / Você me deixa louco / Você me deixa de careta”).

A Estação Melodia (2007) é outro disco que Piau lembra com carinho. Tratava-se de um CD de samba.

“Ele dançava muito bem no palco – uma vez ele demonstrou como dançava até para satisfazer a curiosidade de Deborah Colker (bailarina e coreógrafa), na casa do Jards Macalé, de como fazia os passos com aquela elegância”.

Aliás, Macalé formava com Melodia e Piau um grande trio de amigos e parceiros na música.

“Quando Melodia ia na minha casa, a gente ligava para o Macalé. Mas aí os dois engatavam longo papo. Não entendia nada. Ficava até com ciúme”, conta. “Mas Macalé é um grande cara. Um amigo até hoje. Já gravei várias vezes com ele”.

Luiz Melodia morreu em 4 de agosto de 2017 em decorrência de um câncer.

“Melodia foi o homem mais lindo que conheci. Éramos opostos. Ele quase não falava. Era uma pessoa maravilhosa”.

E segue: “Ele confiava muito em mim. Cantava olhando para mim quando se sentia inseguro. Eu dava as entradas (das músicas)”.

Com as lágrimas escorrendo pelo rosto, encerra a conversa: “É muito difícil. A falta que me faz é imensurável. Queria que ele estivesse aqui”.

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