Cultura
Melhor não ganhar?
É fácil encontrar, na história do Oscar, exemplos de carreiras que, após o prêmio, em vez de decolar, naufragam


O ano é 2006. Na categoria de Melhor Filme, prêmio máximo da 78ª edição do Oscar, estão cinco filmes. A dolorosamente triste história de amor de caubói gay de Ang Lee, O Segredo de Brokeback Mountain, estrelada por Jake Gyllenhaal e Heath Ledger, é um dos favoritos da crítica.
Capote, filme biográfico de Bennett Miller, traz o incomparável Philip Seymour Hoffman no papel-título. O emocionante Boa Noite e Boa Sorte, de George Clooney, celebra uma era de idealismo e ousadia no jornalismo. Munique, dirigido por Steven Spielberg, é um intenso thriller histórico sobre as consequências do ataque terrorista durante as Olimpíadas de Munique.
Mas o filme que vence é Crash: no Limite, de Paul Haggis, uma tentativa nada sutil de envolvimento na política racial dos Estados Unidos por meio de um enredo complexo e multifacetado. As críticas iniciais foram relativamente positivas. A Rolling Stone descreveu-o como “um nocaute” e o Washington Post disse tratar-se de um “raro filme americano realmente sobre alguma coisa”.
Depois da vitória, a percepção do filme começou, porém, a mudar: ele passa a ficar posicionado em algum lugar entre um saco de pancadas e uma antiga piada sobre os hábitos de votação da Academia. Crash ganha um grau de notoriedade que, provavelmente, nunca teria alcançado se não tivesse vencido.
Embora essa não seja uma questão que se coloque nas mentes da elite da indústria cinematográfica, a pergunta está longe de ser descabida: será que, às vezes, não é melhor não ganhar o Oscar?
A história e a mitologia do prêmio abrigam uma fina camada de superstição a respeito de uma suposta “maldição do Oscar”. Isso, argumentam os defensores da tese, ocorre ocasional e aleatoriamente e se manifesta numa carreira que, após a vitória, em vez de receber um impulso, naufraga ou perde o rumo.
Os exemplos citados incluem Louise Fletcher, cuja vitória pela performance arrepiante como a enfermeira de Um Estranho no Ninho (1962), não se reverteu em uma carreira de destaque, e F. Murray Abraham, vencedor com Amadeus (1984), que definhou por mais de uma década em papéis coadjuvantes em filmes B.
Embora seja quase impossível estabelecer uma relação causal entre uma vitória no Oscar e uma espiral profissional subsequente, parece possível que os holofotes que iluminaram Tatum O’Neal, por exemplo – a atriz mais jovem a ganhar um Oscar, aos 10 anos, por Lua de Papel (1973) – tenham contribuído para seus problemas posteriores.
Charles Gant, editor de prêmios da Screen International, tem uma visão mais pragmática das possíveis consequências negativas de uma vitória. “O que pode acontecer é os eleitores recompensarem alguém que foi muito bem escalado para um determinado papel e, depois, Hollywood ter dificuldade para encontrar o papel certo para essa pessoa”, diz. “Isso pode levar o ator a recusar papéis que talvez devesse aceitar ou ao agente exigir cachês desvinculados da realidade do mercado.”
Tudo isso pode distorcer uma trajetória, mas dificilmente chega a ser uma maldição. Mas não quer dizer que não haja forças das trevas em ação. Cada candidato ao prêmio vem com uma narrativa distinta que se desenvolve ao longo da temporada da campanha. Parte disso cresce de maneira orgânica (ao menos aparentemente), parte tem a curadoria de estrategistas de premiação. O objetivo é simples: persuadir os eleitores de que alguns candidatos são mais merecedores que outros.
O escrutínio ao qual são submetidos os candidatos durante as ferozes campanhas pelas estatuetas pode ser devastador
Joe Utichi, editor de prêmios da Deadline, argumenta ser um processo cansativo, que pode ser assustador para aqueles sugados pela máquina de prêmios. “Eu faria uma distinção entre ganhar o próprio Oscar e o período cada vez mais prolongado da campanha, quando as flechas são lançadas, e que agora dura mais de seis meses.
Muitos dos maiores estrategistas cujo trabalho é, hoje, garantir o sucesso na disputa, começaram a carreira na era das premiações de Harvey Weinstein, pela Miramax. E esses players se tornaram cada vez mais implacáveis no processo de apontar buracos entre os competidores.
“Cada movimento de um candidato ao prêmio – durante a campanha e antes dela – é examinado com um nível de escrutínio que até mesmo os ativistas políticos podem achar exagerado”, prossegue Utichi. “E há poucos freios e contrapesos para garantir que essas táticas de campanha sejam examinadas tão minuciosamente quanto os próprios candidatos. O custo humano de existir sob esse microscópio raramente é reconhecido. Mas pode ser absolutamente devastador para os indivíduos que o enfrentam.”
A difamação de candidatos impopulares – e vencedores – não é novidade. O filme Como Era Verde o Meu Vale (1941), que derrotou Cidadão Kane pelo Oscar de Melhor Filme, foi vaiado durante a cerimônia. Mas a reação contra certos vencedores foi ampliada pelas redes sociais. Clipes de momentos particularmente desajeitados de Bohemian Rhapsody circularam amplamente na internet após o Oscar de 2019, com a intenção de questionar a vitória do filme na categoria de Melhor Montagem.
Mas as mídias sociais também podem ser aproveitadas em favor de um filme ou de um ator. Uma enxurrada de clipes mostrando a atuação de Barry Keoghan em Os Banshees de Inisherin não garantiu sua vitória como ator coadjuvante (o prêmio foi para Ke Huy Quan, de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo), mas certamente tampouco o prejudicou.
Já a campanha puxada por outros atores, incluindo Kate Winslet e Edward Norton, apoiando o desempenho notável de Andrea Riseborough no filme de baixo orçamento Para Leslie, levou a sua inesperada indicação como Melhor Atriz em 2023 (categoria vencida por Michelle Yeoh, de Tudo em Todo o Lugar…). Isso repercutiu em certos setores da indústria de prêmios, dedicada à manutenção de campanhas mais tradicionais – e caríssimas.
A reação à indicação de Andrea Riseborough foi rápida e enfática. A campanha foi acusada de quebrar regras – algo que uma investigação da Academia descobriu não ser verdade – e a atriz foi, injustamente, considerada como se estivesse ocupando uma vaga reservada para Viola Davis ou Danielle Deadwyler.
De toda maneira, no fim das contas, o consenso é que, no Oscar, mesmo uma vitória impopular ainda é uma vitória. “Os produtores de Crash se arrependem de ser os garotos-propaganda de vencedores indignos de Melhor Filme?”, pergunta Gant. “Acho que não.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Disputa de discursos e trajes
Assisto à cerimônia de entrega do Oscar 2023 e verifico se tratar do mais tedioso evento que se possa imaginar
por Mino Carta
O ganhador. Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo – Imagem: Diamonds Fillms/A24
Hollywood já teve muito mais glamour, ali estavam figuras do porte de Cary Grant, Gary Cooper, Rita Hayworth, Marilyn Monroe, Elizabeth Taylor etc. etc., sem contar o olhar entre atônito e perplexo de James Stewart. De verdade, todos enchiam as telas e na hora de entregar os Oscars brilhavam com luz própria. Hoje em dia, o único que nunca falha é Steven Spielberg, sempre presente a ponto de me levar a inquirir meus cinematográficos botões: será Spielberg o dono de Hollywood?
Enquanto os botões, eles próprios com a expressão de James Stewart, não respondem, assisto ao espetáculo deste ano para verificar que se trata do evento mais tedioso que alguém possa imaginar. Muita gente anódina presente, muitos discursos, com visíveis lutas entre os oradores para acertar quem fica em destaque e fala mais. Houve ali um produtor de smoking de veludo vermelho carmesim bordado com fios de ouro, que ao longo da noitada conseguiu ganhar o microfone duas vezes em ocasiões distintas. Em ambas regalado até o fundo da alma.
Este ano, o prêmio de Melhor Ator foi para um filme de puro terror, sobre uma baleia interpretada por Brendan Fraser, tão terrificante a ponto de deixar o bicho-papão de castigo.
Já o prêmio principal, de Melhor Filme, coube a uma produção cujas intenções sofisticadas são demonstradas já no título: Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo. Trata-se de uma façanha cultural de notável relevância, ao tentar combinar um pensamento de Immanuel Kant com a Teoria da Relatividade de Albert Einstein. Foi Kant quem disse que o homem inventou o tempo e o espaço para justificar sua presença diante de um universo sem-fim. Quanto a Einstein, tudo é relativo como tempo e espaço.
Não faltaram apresentadores nativos colocados ao ar livre num aprazível terraço. A saber, uma senhora esticada a ferro, mais um casal intencionado, sobretudo representante do sexo masculino, a forçar o mundo a respeitosas curvaturas, graças ao emprego, por ele exibido com transparente prazer, de um par de tênis com um smoking de incerta feitura. Diga-se que também eles fizeram seus discursos, enquanto se premiava até o autor dos brincos da leading lady da cantoria. Exagero, mas é por aí.
P.S.: Antes que o espetáculo começasse, cuidei de fechar o áudio do meu aparelho de televisão.
Publicado na edição n° 1251 de CartaCapital, em 22 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Melhor não ganhar?’
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