Cultura
Meio filosófico, meio engraçado
‘A Natureza do Amor’ parte de clichês para mostrar o desejo voraz, mas também o abismo entre classes sociais


O amor, segundo Platão, está ligado ao desejo. O desejo, por sua vez, vem da falta. O amor, portanto, estaria fadado à frustração. “Desejamos o que não possuímos”, explica, em uma aula para um grupo de terceira idade, Sophia, protagonista de A Natureza do Amor, em cartaz nos cinemas brasileiros desde a quinta-feira 25.
Os ensinamentos da professora Sophia são o grande achado narrativo do terceiro longa-metragem escrito e dirigido pela canadense Monia Chokri. As reflexões filosóficas, inseridas de forma hábil no roteiro, fazem com que o amor voraz da protagonista seja vivenciado, pelo espectador, tanto pelo que tem de profundo quanto pelo que tem de ridículo.
Sophia é uma mulher burguesa, casada com Xavier, intelectual sem habilidade para trocar sequer uma lâmpada, que, de repente, se apaixona por Sylvain, o faz-tudo bonitão que vai arrumar o chalé do casal. A partir desse mote banal, a cineasta reelabora os clichês do amor – tanto os temáticos quanto os estéticos.
O filme divide-se, especialmente, entre cenas de sexo intenso e longas conversas à mesa, e balança como um pêndulo entre duas visões do amor: a do filósofo Vladimir Jankélévitch, para quem o amor é irracional e nos pega como uma doença, e a da teórica feminista bell hooks, para quem o amor é um ato – “Escolhemos amar” – e não um sentimento.
Às reflexões teóricas e a acontecimentos típicos de comédias românticas, Monia adiciona outro elemento fundamental: a questão de classe. Embora Pierre Bourdieu não seja citado no curso de Sophia, a teoria presente em A Distinção se encaixaria como uma luva na trama.
No início da relação entre os amantes, é o corpo que sente e age. Mas, conforme a vida fora das quatro paredes se desenrola, as diferenças sociais começam a perder a tintura romântica e passam a responder, inclusive, pelas cenas mais engraçadas e desconcertantes.
Sophia está rodeada de amigos e familiares que fazem terapia, tomam vinho, avaliam Magritte e Damien Hirst e discutem os detalhes da orquestração da música de uma cantora árabe. Ela se incomoda com o vocabulário de Sylvain, um homem que nunca viu o mar, mas o acha lindo e dotado de “bom coração” – a sagacidade do título original, Simple Comme Sylvain (Simples Como Sylvain), se perde em português.
A produção esteve na mostra Um Certo Olhar, de Cannes, e, no César – o Oscar do cinema francês –, desbancou Oppenheimer, de Christopher Nolan, e Dias Perfeitos, de Win Wenders, na categoria Filme Internacional. Aparentemente simples como Sylvain, A Natureza do Amor é também sedutor como Sylvain. •
Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.
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