Cultura
Maresia
Só agora percebi que uma coisa desapareceu da Cidade Maravilhosa dos anos 50. Por Alberto Villas
Toda vez que venho ao Rio perambulo pelas ruas de Copacabana, meio perdido, meio Fausto Fawcett. Percorro a Avenida Prado Junior do início ao fim, indo e voltando várias vezes. Procuro e não acho aquele prédio decadente de pastilhinhas onde nós – uma família mineira – passávamos nossos julhos. Era sagrado.
Num tempo em que ainda não havia booking.com não me pergunte onde o meu pai encontrava aquele apartamento no décimo segundo andar para passarmos as férias na Cidade Maravilhosa. Sei que chegávamos no primeiro dia de julho e só íamos embora no último. Trazíamos malas de couro, mapas da revista Quatro Rodas, sacolas com mantimentos, esteiras, guarda-sol e muito óleo de bronzear. Não esquecíamos a Rolleiflex e até mesmo uma pequinês, a Pink, vinha com a gente.
O apartamento era pequeno, escuro, mobiliado e feio. As janelas eram pequenas e de madeira, me lembro bem. Difíceis de abrir por causa do excesso de tinta óleo branca que o proprietário deveria passar toda vez que sentia que estavam ficando meio amareladas. Aquilo tudo era muito esquisito para nós. O aquecedor a gás dentro do banheiro esquentava a água mas quase nos sufocava. Minha mãe obrigava todos a tomar banho de porta aberta e de tempos em tempos chamava cada um pelo nome enquanto a água corria para certificar que estávamos vivos.
No primeiro dia, antes mesmo de irmos para a praia, ela descia e, num mercadinho ali perto, comprava um maço de feijão de corda. Quando voltávamos da praia, já com os primeiros sinais de queimadura e com o corpo assando, a salada de feijão de corda estava na mesa, temperada e com uns ovos cozidos por cima. Aquela era a senha que dizia que estávamos de férias na Cidade Maravilhosa.
Da janela um pouco maior da sala enxergávamos um belo horizonte, mas uma cidade que não era a nossa. Muitos prédios, uma neblina cobrindo parte do morro lá longe e um leve cheiro de peixe no ar. Lá embaixo, os carros começavam a circular logo cedo. Tinha Corcel, Opala, Vemaguete, Dauphine, Gordini e Simca Chambord.
A parede do apartamento era caiada de branco e se encostássemos, a tinha costumava sujar nossas roupas. A luz era bem fraca, poucas velas, acho que para economizar energia. O quartinho de empregada era assustador. Só cabia uma cama de solteiro, patente, pequena, e nada mais. Lembro-me que o chão da cozinha era vermelho e os armários que ficavam embaixo da pia cheiravam a mofo. O basculante da cozinha tinha um vidro quebrado que ano após ano nunca era trocado.
Na portaria do prédio, apenas uma mesa de madeira e alguns jornais – O Globo e o Jornal do Brasil – que os moradores assinantes iam passando e pegando logo cedo. O porteiro usava uma camisa azul e um bordado com o nome do edifício no bolso direito. Não consigo me lembrar o nome, se lembrasse certamente conseguiria localizar aquele prédio de pastilhinhas onde passávamos as férias e que sempre procuro quando venho ao Rio.
Essa história me veio à cabeça hoje porque depois de escrever na semana passada sobre os pintinhos de um dia que sumiram das cidades grandes, um leitor de Minas Geais me enviou um e-mail dizendo que o que o impressiona é o sumiço da maresia no Rio de Janeiro.
Pensei, é verdade. A geladeira daquele apartamento na Avenida Prado Junior era toda comida nas beiradas pela maresia. E não era só a geladeira. O fogão, a torradeira e todos aqueles Corcéis, Opalas, Vemaguetes, Dauphines, Gordinis e Simcas Chambord que circulavam lá embaixo. Andando por Copacabana era comum ver carros cobertos com um capa de lona para evitar a maresia que, como o pintinho de um dia, também sumiu.
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