Cultura
Mande notícias do mundo de lá
Vai e Vem constrói-se a partir de cartas em forma de vídeo trocadas por duas cineastas no início da pandemia


Quem escreveria cartas agora que o mundo trocou até a brevidade do telegrama pela instantaneidade do Telegram? O e-mail, termo usado para aportuguesar a extensão de correio eletrônico supostamente substituiu o papel (e o selo, o envelope e a ida à agência postal).
Mas artistas, gente mais preocupada com problemas do que com soluções, deram um jeito de tirar o objeto carta do esquecimento.
Vai e Vem, documentário da cineasta mexicana Chica Barbosa e da brasileira Fernanda Pessoa – em cartaz desde a quinta-feira 16 – retoma essa forma de interlocução tornada obsoleta na era da hipercomunicação.
No lugar do papel, as diretoras adotaram o vídeo como suporte.
A solução evoca o projeto Correspondencias, que reuniu o cineasta espanhol Victor Erice e o iraniano Abbas Kiarostami num fascinante diálogo audiovisual entre 2005 e 2007.
A correspondência entre Chica e Fernanda é mais existencial e experimental que conceitual. A troca ocorreu ao longo de 2020, no contexto da pandemia.
Fernanda enfrentava o isolamento no Brasil, enquanto Chica vivia o distanciamento em Los Angeles. Lá e cá, governos homicidas complicavam a sobrevivência, tornando a população refém de ideias tão letais quanto o Coronavírus.
A perspectiva adotada pelas cineastas é feminista, ou seja, dissidente. E elas se impuseram três regras, explicitadas no início do filme:
1. “Até o fim do ano, vamos nos falar apenas por videocartas, como antídoto aos aplicativos de mensagens e chamadas.
2. Cada carta será inspirada formalmente e/ou tematicamente por uma cineasta experimental.
3. Prazo para resposta: 3 semanas”.
Por que cartas? “Porque tínhamos necessidade de nos comunicarmos, e ligações por vídeo e mensagens de voz no WhatsApp não eram suficientes para dar conta daquela realidade”, explica Fernanda.
Pois cartas, ao contrário das mensagens instantâneas, demandam tempo, pausas, elaboração e um tanto de reflexão.
As trocas que compõem o filme revelam essa necessidade, pois não contêm apenas relatos da experiência, registros de um cotidiano que converteu as trocas num treco abstrato. Refletir é usar a imaginação para escapar, reinventar, interpretar e projetar.
Em vez de fazer do filme um Instagram Stories expandido, as cineastas se expressam sem perder o horizonte do nós. Assim, Vai e Vem funciona como memória de tempos difíceis e como alerta de que outros piores podem vir. •
Publicado na edição n° 1286 de CartaCapital, em 22 de novembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mande notícias do mundo de lá’
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