Cultura

Mamãe, eu fui a Cuba

O dia em que fui pra ilha com Chico Buarque e Maria Bethânia

Havana...
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Quando o avião pousou na Cidade do Panamá, a capital de um país que nunca sonhei visitar, eu estava com o coração na mão. Foi uma baldeação rápida, tempo para comer um pero caliente e tomar uma Fanta no aeroporto internacional de Tocumen.

Agora, estava em outro avião, um avião da Cubana, confesso que mais assustado ainda. As paredes forradas de papel florido estavam descolando, as janelinhas tremelicando e um vapor saía dos cantos do bagageiro, deixando-nos quase cegos.

Durante o voo, foi servido um sanduíche seco, um pacotinho de biscoito tipo Maria e uma cerveja morna, boa, numa garrafa sem rótulo. Cochilei e quando abri os olhos já estava sobrevoando a ilha de Cuba, o pedaço de terra que um dia sonhava conhecer, desde 1959, quando os guerrilheiros desceram a Sierra Maestra e derrubaram o ditador Fulgêncio Batista.

Era um tempo em que andava encantado com o disco Rosa dos Ventos de Maria Bethânia. Cada canção de um vinil cheio de chiados, fazia lembrar um amor universitário desesperado e mal resolvido.

Logo nos primeiros acordes, Bethânia dava o tom: “As sombras são assombrações /As vibrações, a sombra e o som/Da amada, da visitante imaginada/Teu ventre invento e o teu silêncio/É o som de uma celesta”.

Andava também apaixonado pelo disco Chico Buarque & Maria Bethânia ao Vivo. Adorava os dois cantando: “Mesmo com toda a fama/Com toda a Brahma/Com toda a cama, com toda a lama/A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando/A gente vai levando essa chama”..

Eu olhava pra trás procurando Maria Bethânia em cada banco daquele avião esquisito da Cubana. Chico, eu enxerguei, mas Bethânia misteriosa, não. Cadê Beta, Beta, Bethânia?

O avião balançou muito antes de pousar em Havana. Eu estava chegando à ilha de Cuba com uma missão do jornal O Estado de S. Paulo: Cobrir o Festival de Música de Varadero.

No saguão do aeroporto, vi Chico Buarque sendo tratado como um paxá. Os cubanos acenavam e diziam seu nome sem parar.

– Chico! Chico! Chico! Hola! Qué tal?

Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar, arrastando um mocassim marrom, olhando para um, acenando pra outro, um sorriso tímido, bem Chico.

Ele vivia seus dias de Velho Francisco: “Já gozei de boa vida/Tinha até meu bangalô/Cobertor, comida/Roupa lavada/Vida veio e me levou/Fui eu mesmo alforriado/Pela mão do imperador/Tive terra, arado/Cavalo e brida/Vida veio e me levou”.

Não vi Bethânia no aeroporto. Só fui vê-la no palco ao ar livre, na praia de Varadero, cantando Gostoso demais: “Tô com saudade de tu, meu desejo/ Tô com saudade do beijo e do mel/Do teu olhar carinhoso/Do abraço gostoso/De passear no teu céu”.

Os cubanos cantavam e dançavam ao som de Los Van Van, aplaudiam Bethânia e Chico de pé, como se fossem uns deuses. Pela primeira vez na vida, vi policiais dançando num festival de música. Éramos todos soldados, braços dados, armados ou não.

Estávamos sendo bombardeados por notícias de todos os lados. Procurava entender a história do alemão Mathias Rust, de 19 anos, que pegou um aviãozinho Cessna, entrou no espaço aéreo da União Soviética e voou 640 quilômetros até pousar no meio da Praça Vermelha, bem pertinho do Kremlin. O marechal Sokolov, ministro da Defesa, acabou exonerado e Mathias, preso para dar explicações.

Em San Francisco, saíam de cena os hippies para dar lugar aos yuppies. Em Nova York, uma notícia pegava todos de surpresa. Depois de uma simples operação de vesícula, morria Andy Warhol, aos 55 anos de idade. E o Alzheimer levava, aos 69, a deslumbrante Rita Hayworth.

Nós perdíamos o escritor Gilberto Freyre, mestre de Casa-grande & senzala, e o nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade. Aos 84 anos, morreu na Cidade Maravilhosa, doze dias depois da filha, Maria Julieta.

E agora, José?

Em Goiânia, um homem simples assustava o Brasil: Devair Alves de Lima, dono de um ferro-velho que recolheu, no lixo do Instituto de Radioterapia, uma cápsula de Césio 137. Curioso, abriu e espalhou radioatividade pela Rua 57. Mortos, feridos e cicatrizes para sempre. Uma tragédia brasileira.

Chico cantava no toró: “Sambando na lama de sapato branco, glorioso/Um grande artista tem que dar o tom/Quase rodando, caindo de boca/A voz é rouca, mas o mote é bom/Sambando na lama e causando frisson”.

O Festival de Varadero acabou altas horas com o povo suado, cansado e feliz. Poucas horas depois, voamos para Havana.

Foi caminhando pelo Malecón, vendo aquele mar bravo bater nas pedras e jogar água salgada no calçadão, que encontrei duas jovens cubanas, estudantes. Não, elas não invadiram a areia branca da praia de Varadero. Não viram Chico e Bethânia de perto, um sonho delas.

Sabiam de cor e salteado e cantaram juntas A flor de piel:

“Oh qué será que me da/Que me golpea por dentro, será que me da/Que brota a flor de piel, será que me da/Y que me sube a la cara y me hace sonrojar/Y que me salta a los ojos a me traicionar/Y que me apreta el pecho y me hace confesar/Lo que es inutil de disimular”.

Ainda deram uma canja cantando em português, segundo elas, uma marchinha “para hacer dormir los niños”: “Estava a toa na vida, o meu amor me chamou/Pra ver a banda passar…”

Caminhamos e cantamos. Ganhamos charutos, compramos rum, passamos uma hora na fila para conseguir comer uma hamburguesa que era só um pedacinho de carne e pão, sem cebola, sem tomate, sem picles, sem molho especial. Quando a noite chegou, dançamos numa praça pública, cercada por galhos secos, cheia de lâmpadas coloridas e bandeirinhas de papel crepon. Cantamos Guantanamera, Bésame mucho, Yolanda, Amo esta isla e prometemos voltar Cuba um dia.

Quizás, quizás, quizás

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