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Males do corpo e da alma

Em Dentes, escrito em 1994 e lançado agora em português, Domenico Starnone já mostrava sua capacidade de prender o leitor e de ser conciso

Males do corpo e da alma
Males do corpo e da alma
Imagem: Redes sociais
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Quando criança, o narrador de Dentes teve de aturar toda a sorte de apelidos inspirados por sua boca: dentuço, dentado, dentildo. Se, irritado, resolvia abri-la para assustar quem o importunava, ouvia: “O hipopótamo!”, “O crocodilo!”

É esse homem que, no início do livro, vê-se com os dentes partidos por um cinzeiro atirado em sua direção pela companheira que não aguentava mais seus ataques de ciúmes. “Se me tratar assim de novo, arrebento seus dentes”, advertira ela.

O protagonista deste antigo romance de Domenico Starnone, traduzido agora para a português, é, como outros personagens do autor italiano, um “mísero homem aflito” – para tomar emprestada a autodefinição dada por Aldo, em Laços, a célebre obra de 2014.

Starnone, que, aos 79 anos, goza de grande sucesso e prestígio, sabe brincar com as pequenas identificações entre os personagens de seus diferentes livros, como se assim nos tornasse mais cúmplices deles. Mas ele sabe também tornar cada livro único. Se Dentes não causa o impacto de Laços e Segredos, faz rir mais do que qualquer um deles.

O protagonista da improvável trama é um desses narradores dotados de uma graça involuntária, que brota de pequenos incidentes e de um olhar patético sobre si. Nossas descobertas a respeito dele se darão, sobretudo, em consultórios dentários.

DENTES. Domenico Starnone. Tradução: Maurício Santana Dias. Todavia (176 págs., 64,90 reais)

À parte quem é ele, um profissional às voltas com o desemprego e um homem que largou a mulher e os filhos para ficar com a amante, adivinharemos sua aparência pelos comentários dos profissionais que o atendem.

Bocarra de tubarão, diz um. Boca estranha, diagnosticará outro. Um terceiro, quase como elogio, define: dentes de javali. “Eu odeio meus dentes. Quanto antes os arrancarem, melhor”, diz ele, certo de que o organismo guarda os males que o cérebro vai mandando para um ou outro pedaço do nosso corpo. “Será possível morrer de dor de dente?”

Embora os anos viessem a transformar Starnone em um narrador ainda mais hábil e em um observador mais arguto das contradições que nos habitam, Dentes, escrito em 1994, contém dois elementos que seguiriam a marcar sua escrita: a concisão e a surpresa.

Menos evidentes nesse livro são as características que fizeram com que, mais recentemente, seus romances fossem vistos como duplos daqueles de Elena Ferrante – supostamente, o pseudônimo de Anita Raja, mulher de Starnone. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1237 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Males do corpo, desventuras da alma “

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