Cultura
Luiz Gushiken, presente
Coletânea de artigos relembra a trajetória e o legado do ex-ministro no sindicalismo, no PT e no governo Lula


Setembro de 2013 marcou o tempo de despedida de Luiz Gushiken, figura histórica, reconhecido como uma das mentes mais brilhantes, respeitadas e influentes do Partido dos Trabalhadores. Suas ideias e ideais continuam de uma atualidade singular, beiram o misticismo que sempre o cercou, e nem por isso desqualificava sua atuação política.
Gushiken sobreviveu durante alguns anos às injustiças da famigerada batalha judicial batizada de “Mensalão”, notória por ter deixado um rastro de estragos irreparáveis e dezenas de abusos cometidos contra os direitos humanos fundamentais, os direitos políticos, a economia nacional e as garantias individuais. Foi o primeiro réu a ser inocentado pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, mas os danos morais e físicos causados pelo processo eram irreparáveis e sua saúde não resistiu. O STF não teve a justeza de anular o processo, pois nenhum malfeito foi comprovado, nenhuma testemunha ouvida, e nenhuma prova jamais foi apresentada.
O descendente de pais imigrantes de Okinawa chegou ao banco Banespa nos anos 1970. Sua habilidade em liderar comícios nas ruas estreitas do centro financeiro de São Paulo mobilizava multidões, que se aglomeravam para ouvi-lo. Ganhou notoriedade e ficou conhecido como o “japonês” sindicalista que vestia paletó e demonstrava eloquente capacidade de diálogo e persuasão. Desempenhou papel fundamental na fundação e organização do Partido dos Trabalhadores e foi encarregado da formulação da política sindical partidária. Após a fundação do PT, foi ativo na articulação e criação da Central Única dos Trabalhadores, em 1983. Elegeu-se presidente do Sindicato dos Bancários e, em 1985, liderou a maior greve da história da categoria.
Sua eleição a deputado constituinte em 1986 foi um processo natural, pois sua liderança e habilidade de articulação o consagraram como um dos principais líderes que atuaram na defesa dos direitos da classe trabalhadora na Carta Magna. Após três mandatos consecutivos, Gushiken abdicou de uma fácil reeleição para se dedicar à organização dos fundos de pensão no Brasil, tornando-se um especialista no assunto. Foi o mentor da criação de diversos fundos pelo País, auxiliou municípios e estados a organizar e montar seus fundos de previdência. Ele não conseguiu, no entanto, se manter distante da política por muito tempo. Seu retorno se deu pelo convite de Lula, que fez questão de chamá-lo para coordenar a campanha presidencial em 2002.
Essas e outras histórias integram o livro A Nova Ordem Luiz Gushiken, obra coletiva que reúne 67 autores e autoras e foi organizado para marcar a data de dez anos de sua morte e recolocar em evidência sua contribuição intelectual. O título do livro faz referência à sua tese de 1994, intitulada A Nova Ordem Mundial, publicada pela Câmara dos Deputados. Ousado na defesa de um novo paradigma, mal compreendido entre seus pares, Gushiken propunha um novo modelo de governança global. Entusiasmado com a criação da Zona do Euro, afirmava que “o fanatismo religioso, acompanhado de um nacionalismo desenfreado, divide povos, sacode o mundo e dissemina o terror nas áreas onde penetra”. Quando identificou o perigo das ações dos EUA contra a Líbia e indicou a necessidade de um Tribunal Internacional para mediar o conflito, suas palavras assumiram um tom profético. Suas reflexões sobre ética e seus questionamentos sobre o domínio das redes de comunicação de massa poderiam ter sido escritos ontem, tamanha a atualidade e relevância.
A NOVA ORDEM LUIZ GUSHIKEN. Fernanda Otero (org.). Fundação Perseu Abramo (288 págs., PDF gratuito)
Em 1994, Gushiken questionava: “A democracia, amparada numa imprensa livre e num poderosíssimo arsenal de comunicação de massa, não haverá de impor uma nova forma de relacionamento entre o cidadão e a esfera pública?” E prosseguia: “Este invento humano notável rompe fronteiras, cria simultaneidades impensáveis no passado, altera hábitos e costumes, estimula ações, atravessa tempos e espaços, altera comportamentos sociais, amplia o pequeno e diminui o grande, entorpece e também educa mentes. Trata-se de um instrumento benéfico e ao mesmo tempo perigoso, pois depende de quem o manipula”.
Sua fascinante capacidade crítica nos convidava a criar novos paradigmas de cidadania participativa e deixar a prática do “conflito como modus vivendi”, pois esse modelo “haverá de ceder espaços para um novo tipo de relacionamento entre as nações, que seja mais cooperativo e equânime em seus princípios”. Defendia ainda que “a introdução da solidariedade ativa entre as nações e, de outro lado, uma redução na sua taxa de conflito inaugurarão algo inédito na história, carregada de imensas potencialidades para o progresso humano”. Material rico em análise histórica e novas perspectivas revolucionárias. A atuação do presidente Lula e seu protagonismo de liderança global refletem, em alguma medida, a inspiração “gushikeniana”. Quem duvida pode reler o discurso do presidente na abertura na Assembleia da ONU em prol do “desenvolvimento sustentável e da reforma das instituições de governança global”.
Poucos dias antes de sua partida, Gushiken foi chamado por Lula para comentar sobre as trevas na qual estávamos metidos naquele fatídico 2013. Sua preocupação inicial foi reafirmar a defesa incondicional do legado do PT e de seus quadros. Apontava para as “três dimensões” dos protestos daquele ano, identificando “grupos novos se manifestando na sociedade” apoiados na “violência premeditada e obscuridade de interesses de alguns”. Tudo isso se confirmou na sequência, com a Operação Lava Jato, o processo de impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
Se Gushiken tivesse resistido, teria atuado com sua firmeza singular das duras batalhas que ficaram ainda mais trágicas nos anos seguintes. Seus insights e sua visão continuariam a nos inspirar e nos lembrar do poder da esperança e da transformação, mesmo diante dos desafios mais duros. Seria aquele a apontar os caminhos para combater a barbárie, propondo alternativas e dialogando incansavelmente, pois, antes de ser um solitário samurai, era um brasileiro que jamais desistiu e sabia que o melhor desta terra será sempre o seu povo, a quem dedicou sua vida. A eleição de Lula em 2022 também tem um tanto de seu legado. •
*Jornalista, foi assessora de Luiz Gushiken.
Publicado na edição n° 1282 de CartaCapital, em 25 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ”
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