Cultura

‘Lovecraft Country’ mistura com sagacidade medo e ficção científica

Primeira temporada de série da HBO foi impecável em unir terror e racismo

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Certas vidas dariam um filme ou um livro, diz-se por aí. No caso dos negros, de forma geral, há limites de gênero: suas histórias normalmente se encaixam em obras de terror ou ficção científica. Ou não se trata de um mundo paralelo e aterrador os Estados Unidos do Black Lives Matter ou o Brasil preso ao passado escravocrata, do extermínio diário dos “pobres quase todos pretos” que ceifa gerações de jovens e crianças? O terror e o sci-fi, não raro, estimulam a xenofobia e o racismo com sua profusão de alienígenas, fantasmas, seres das profundezas, forasteiros esquisitos e invasores de corpos. Os diferentes, as minorias, o outro, encarnam o mal.

 

A primeira temporada da série Lovecraft Country, exibida na HBO, foi impecável em unir esses elementos, terror e racismo. O universo de HP Lovercraft, escritor norte-americano da virada do século XIX que revolucionou o gênero ao incluir pitadas de fantasia e ficção científica, embala a jornada dos protagonistas, negros acossados pelo preconceito sufocante dos anos 1950 nos Estados Unidos, em especial na América profunda, e cujo ódio acumulado por séculos desaguaria nas revoltas e em avanços sociais na década seguinte, não sem sangue, lágrimas e quebra-quebra.

Os monstros e a magia em cada episódio refletem as angústias e os medos de quem corre o risco de morrer se estiver na estrada errada, na rua errada, no momento errado. Obrigados a escapar da violência racial cotidiana, os personagens ainda precisam lutar contra uma irmandade branca em busca da imortalidade. Estão nessa por um “desvio” do líder da seita. Em tempos idílicos, diriam que o patrão não resistiu aos encantos da empregada. Nada disso. Ao fugir dos abusos do empregador, ela carregou segredos e um filho no ventre, primogênito de uma geração particular de mestiços com poderes especiais. A exceção comprova a regra. Os conflitos originam-se desse sobressalto no curso da história.

A engenhosidade de Lovecraft Country deve-se muito ao produtor Jordan Peele. Aos 41 anos e com uma carreira consolidada, o ator, diretor e produtor usa o terror para discutir o racismo. Dirigiu em um curto intervalo dois filmes aclamados pela crítica, Corra e Nós. Herdeiro legítimo de Spike Lee, trouxe frescor às denúncias sociais. Em 2019, na cerimônia do Oscar, Peele uniu-se a Lee, que concorria com Infiltrados na Klan, em um protesto contra a vitória de Green Book, feito sob medida para os eleitores da Academia e acusado de distorcer a realidade. Duas horas depois o espectador paciente descobre que o bronco motorista ligado à máfia ensina tudo e não aprende nada com o pianista clássico negro em uma turnê pelo Sul dos EUA ainda nos tempos da segregação racial. É de chorar… de vergonha.

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