Cultura
Longa viagem bibliotecas adentro
o ensaísta italiano roberto calasso explora com graça e sagacidade os mistérios guardados nas estantes de uma casa, nas livrarias e nas mentes dos leitores


Roberto Calasso, ensaísta e editor nascido em Florença, em 1941, e morto em 2021, atravessou a vida entre e sobre livros. Não deixa, portanto, de conter um tanto de autobiografia Como Organizar uma Biblioteca, publicado na Itália, em 2020, e agora traduzido para o português.
O formato menor que o padrão e a capa marrom com letras impressas na cor das lombadas de livros antigos tornam a edição da Companhia das Letras especialmente atraente para aqueles que, como certos personagens trazidos à luz por Calasso, têm com o objeto livro uma relação que passa pelo encantamento.
Além do ensaio- título, o volume contém outros três textos: Os Anos das Revistas, Nascimento da Resenha e Como Organizar uma Livraria. São todos ótimos, mas nenhum supera o primeiro.
A ideia que Calasso explora com sagacidade e graça é a de que a ordem em que os livros são postos nas estantes revela os caminhos do pensamento daquele que criou as regras. “Entrando num cômodo, se reconhece rapidamente, mesmo só pela cor e pela estética das lombadas, do que é feita a paisagem mental do dono da casa”, aposta.
Na Itália do pós-Guerra, por exemplo, uma casa na qual se viam as lombadas vermelhas da coleção da editora Saggi Einaudi deixava evidente que seus moradores pertenciam “à esquerda iluminada”. Os livros também desmascaram, mais do que velhas pantufas ou objetos de decoração, o idílio do pobre rico, descrito pelo arquiteto Adolf Loos.
Como Organizar uma Biblioteca Roberto Calasso. Tradução: Patricia Peterle. Companhia das Letras (144 págs., 64,90 reais)
Calasso, naturalmente, ao explorar as bibliotecas aproxima-se também do fetiche do bibliófilo e da necessidade de uso e de contato do leitor. Para ele, “não deixar no livro rastros de leitura é uma prova de indiferença – ou de mudo estupor”. Mas vem então a pergunta que a todo leitor atormenta: como intervir? O autor aceita e compreende quase tudo que se faça. Mas tem calafrios ao pensar nas intervenções feitas a caneta.
O verdadeiro leitor, diz, está sempre lendo um livro, “ou dois, ou três, ou dez”. E pode ser qualquer coisa. Calasso faz uma sagaz defesa dos “livrecos” e pondera que a ordem alfabética, tão útil e bem-vinda em “algumas zonas”, é impraticável para um livro sobre “plantas na Cornualha”.
Os “nãos” ditos a tantos volumes; as obras lidas 40 anos depois de compradas; o livro que se insinua quando vamos pegar outro; a tipografia; as bibliotecas da Roma antiga; o drama dos livreiros para “resistir à invasão cotidiana de novos títulos”; tudo isso, nos mostra Calasso, é uma forma de amor. Os livros, no fim, não ficam em nós pelo que nos contam ou ensinam, mas pelo “tipo de ressonância que despertam em nossas mentes”. •
Publicado na edição n° 1258 de CartaCapital, em 10 de maio de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Longa viagem bibliotecas adentro’
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