Cultura

Livro revisita a trajetória d’O Pasquim

Um semanário bairrista, machista, politicamente incorreto e… inesquecível

Nas bancas de revista. No período áureo, o tabloide chegou a vender 200 mil exemplares por semana. A partir de 1986, a publicação começou a fenecer - Imagem: Matrix Editora
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O jornalista gaúcho Márcio Pinheiro tinha 2 anos de vida quando o primeiro número de O Pasquim chegou às bancas e fez uma revolução na imprensa brasileira. E uns 15 quando começou a ler regularmente o semanário irreverente, que comprava nas bancas. Até então lia de quando em vez, já que seus pais eram leitores permanentes.

Diz que O Pasquim foi fundamental para que ele, em 1986, se decidisse pela carreira de jornalista. E conta que se dedicou em tempo integral durante três meses, mais um para conferir e confirmar dados, até concluir o material que pensava publicar em 2019, quando O Pasquim cumpriria meio século. E mais: conta que achou que o seu seria apenas mais um livro entre outros que celebrariam a data.

Que nada. Não apenas nenhum livro apareceu, como ele precisou peregrinar durante outros três anos até a Matrix publicar o que agora chega às livrarias, com o título de Rato de Redação – Sig e a História do Pasquim.

Sig, para quem não sabe, era um desenho especialmente criativo feito por ­Jaguar, e assim batizado em homenagem a Sigmund Freud. Suas tiradas resumiam à perfeição o espírito que guiava o semanário: irreverência, criatividade, liberdade absoluta de expressão (e isso, debaixo de uma ditadura feroz que censurava tudo), uma linguagem coloquial e debochada.

A ideia era simples: todo jornalista gostaria de ser dono de um jornal e não precisar obedecer ao patrão. Com esse espírito, um grupo que reunia o glacê do bolo da época – de Henfil a Ivan Lessa, de Paulo Francis a Jaguar, de Ziraldo a Sérgio Augusto, passando por Sérgio Cabral, Millôr Fernandes e Martha Alencar, todos comandados por Tarso de Castro – resolveu criar o próprio jornal. E deu tão certo que, em seu período áureo, chegou a vender estonteantes 200 mil exemplares por semana, superando publicações de empresas de peso como, por exemplo, as revistas Veja e Manchete.

Ao longo de 188 páginas (mais duas de bibliografia), Márcio Pinheiro refaz, com minúcia de sacerdote asteca, toda a trajetória do semanário que revolucionou a linguagem jornalística da época.

Conta como o espírito de Ipanema, daquela Ipanema, impregnou-se nas páginas e delas se espalhou País afora. Ressalta que a maneira de fazer entrevistas fugia a toda norma existente: eram, na verdade, conversas soltas, regadas a uísque, o que fazia com que os entrevistados acabassem se mostrando de maneira aberta, algo absolutamente insólito.

Bairrista, provinciano, machista, politicamente incorreto como nunca antes se havia visto, O Pasquim passou por várias etapas e sobreviveu a quase todas, pelo menos até a retomada da democracia.

As mudanças de linha – e de prumo – se deram em razão de dissidências internas, que começaram com a defenestração de Tarso de Castro, o criativo jornalista gaúcho que imprimiu a primeira – e mais luminosa – fase do semanário. Vítima da censura cada vez mais rigorosa da ditadura, no fim de 1970, o jornal passou por uma verdadeira varredura. Com quatro exceções (Martha ­Alencar, ­Henfil, Miguel Paiva e Millôr Fernandes), toda a redação foi presa, além de colaboradores mais assíduos, como o fotógrafo Paulo Garcez e o diretor de teatro ­Flávio Rangel. Até o diretor de publicidade, ­José Grossi, e o então contínuo Haroldo Zager foram parar no xilindró.

Como, na época, não se podia falar em prisão, correu País afora a notícia da “gripe” que durou mais de um mês. Nesse período, O Pasquim reuniu um time extraordinário de colaboradores.

Conforme a ditadura militar, que durou de 1964 a 1985, ia arrefecendo,

O Pasquim foi se tornando uma publicação cada vez mais política, sobretudo a partir de 1982, quando o País retomou as eleições diretas para governador e Assembleias Legislativas estaduais.

Ficaram para a história entrevistas como a de Leila Diniz, símbolo maior da Ipanema daquela época, ou do colunista social Ibrahim Sued, na primeira etapa do Pasquim. E, depois da anistia de 1979, com a volta dos exilados, foi nas páginas do tabloide que figuras como ­Leonel ­Brizola, Miguel Arraes, Darcy Ribeiro e um mais que amaldiçoado Luís ­Carlos Prestes, símbolo máximo do Partido ­Comunista, encontraram espaço para expor suas visões do Brasil e do mundo.

E, ironias do destino, quando mais se consolidava a retomada da democracia, menos peso O Pasquim tinha entre seus leitores.

O semanário mais inventivo e mais desafiador do jornalismo brasileiro das últimas muitíssimas décadas foi fenecendo a partir de 1986. Graças à teimosia e à tenacidade de Jaguar, sobreviveu até 1991.

O País havia mudado, o Rio de Janeiro já não era o que tinha sido, e já não havia espaço para a publicação que revolucionou o seu tempo.

Haveria espaço, neste Brasil de hoje, para um novo Pasquim? Márcio Pinheiro é contundente: “Um outro Pasquim, igual ao Pasquim, seria impossível”. O politicamente incorreto, uma de suas marcas, não seria aceito.

Mas, pensando bem, alguns dos ensinamentos do glorioso Pasquim, como recorda o próprio autor do livro, poderiam muito bem ser lembrados pelos profissionais da imprensa: audácia, criatividade, curiosidade e pluralismo. Ou seja, tudo que falta em nossos meios de comunicação, digo eu. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1201 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Memórias da irreverência”

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