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Letras periféricas

As obras produzidas à margem das grandes editoras ganham impulso graças ao maior interesse nos relatos de vozes antes apagadas e à visibilidade propiciada pelas redes sociais

Oralidade. O Sarau Cooperifa, no Jardim Guarujá, em São Paulo, foi um dos lugares onde essa produção floresceu - Imagem: Ricardo Vaz
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Quando indagado sobre em que momento pensou tornar-se escritor, o gaúcho José Falero faz um breve silêncio antes de responder: “Essa é uma pergunta que não faz mais sentido para mim. Escrever se tornou uma ideia natural. Fico pensando por que as pessoas não escrevem”. Nascido na periferia de Porto Alegre, no bairro Lomba do Pinheiro, Falero é autor do romance Os Supridores (Todavia, 2020).

O livro parte de sua experiência no trabalho em um mercado, mas toma caminhos fictícios. Na trama, dois supridores começam a empreender, vendendo maconha. Primeiro, a clientela é formada por colegas, mas, conforme a fama da qualidade do produto se espalha, eles ganham mais clientes e muito dinheiro.

Sua primeira obra publicada de “forma tradicional”, por uma editora gaúcha, foi a coletânea de contos Vila Sapo ­(Venas Abiertas, 2019). Tônio Caetano, o editor, fez um empréstimo para poder lançar a obra e Falero diz que “ficava sem dormir, pensando em formas de vender o livro para pagar o empréstimo”.

A saída, como acontece com vários autores periféricos, foi comercializar o livro por conta própria. Falero fazia o ensino médio no Educação de Jovens e Adultos (EJA), programa voltado a adultos que abandonaram o ensino formal, e ali criou seu ponto de vendas.

Exemplar daqui, exemplar dali, Vila ­Sapo chegou às mãos do escritor e professor Luís Augusto Fisher, que o convidou para escrever crônicas em sua ­newsletter. Esses textos chamaram a atenção da Todavia, que lançou Os Supridores e, logo depois, a coletânea de crônicas, Mas em que Mundo Tu Vive? Mas Falero é exceção. A maioria dos autores vindos das bordas das cidades não consegue chegar às editoras médias ou grandes e, consequentemente, às livrarias.

Ação estética. “Todo livro lançado por pretos e periféricos é uma forma de resistência”, diz Wesley Barbosa – Imagem: Felipe Felisberto

“As editoras periféricas e independentes muitas vezes são as primeiras a descobrir essas vozes, mas contam com um espaço reduzido na imprensa tradicional e nas livrarias”, diz Rita Mattar, sócia da Fósforo, que está lançando ­Baldomero (Ou Babá, para os Íntimos, Inexistentes), romance de estreia do poeta ­Leandro ­Rafael Perez, nascido na divisa de São Paulo e Diadema.

Ni Brisant, professor, poeta e editor na Selin Trovoar, aponta o Sarau Cooperifa, criado em 2001, em Taboão da Serra, pelos poetas Sérgio Vaz e Marco Pezão, como o lugar em que essa produção começou a florescer – hoje, os saraus acontecem no Bar do Zé, no Jardim Guarujá, extremo sul da capital paulista. “Havia um apagamento dessas vozes”, diz.

A partir dos saraus, foi ganhando força a autopublicação e, assim, os autores foram, nas palavras de Brisant, se tornando “livreiros de si mesmos”, sendo parte muito ativa no processo editorial. “É preciso que esse escritor se associe à sua obra”, diz. “As pessoas compram muito pela identificação com quem escreveu o livro, e há uma parcela de simpatia pelos posicionamentos políticos postados nas redes sociais.”

O paulistano Wesley Barbosa conhece bem essa realidade. Autor de três livros de contos, ele publicou este mês seu primeiro romance, Viela Ensanguentada (Ficções, 2022). Nascido em Itapecerica da Serra, e hoje morador da região central de São Paulo, ele vende os próprios livros, sobretudo, a partir das redes sociais. Antes mesmo do lançamento oficial do romance, 200 exemplares foram comercializados pelo Instagram. Nesse mesmo esquema, O Diabo na Mesa dos Fundos (Wesley Barbosa, 2015) já vendeu cerca de 5 mil cópias.

Por meio da escrita, os autores ocupam a cidade que nem sempre lhes é amigável

Como muito de seus colegas periféricos, Barbosa escreve sobre sua realidade, sobre um mundo que conhece bem. Suas obras, embora não sejam sobre si, têm fortes traços autobiográficos. Viela Ensanguentada conta a história de um adolescente da periferia que sonha ser escritor desde o momento em que, para matar aula, entrou na biblioteca da escola – exatamente como aconteceu com ele.

“Nunca tinha visto alguém contar a história do meu bairro, a dureza da vida. Cresci num lugar onde não havia incentivo à leitura, mas descobri que ler é fundamental para se tornar um ser pensante”, diz. “Todo livro lançado por pretos e periféricos é uma forma de resistência, e significará menos sangue de pessoas negras na rua.”

O escritor conta que nunca teve, na escola ou em casa, estímulo para escrever ou ler e diz que só depois de terminar o ensino médio descobriu que Machado de Assis era negro. Hoje, cita Lima Barreto e Carolina de Jesus como autores que o influenciam. “Eles abriram portas, deixaram uma fresta para a gente, e nós temos que terminar de arrombar”, diz.

Perez, autor de Baldomero, formado em linguística pela USP, vê hoje um interesse em que a periferia seja descrita. “Sinto que há uma demanda tanto dos leitores quanto da academia por narrativas sobre essas regiões e produzida por pessoas que vieram de lá”, diz. Ao que parece, esse interesse vai se estendendo ao mercado.

Perez chegou à Fósforo por meio da escritora Lilian Sais e admite que o trabalho de editores profissionais foi fundamental para que o livro chegasse à sua forma final. Baldomero narra as desventuras de um jovem nascido em Vila Clara, próximo a Diadema, que, ao entrar na USP, se muda para o centro da cidade. No romance, o espaço é um elemento muito importante. É como se, simbolicamente, por meio da literatura, esses autores ocupasem a cidade que nem sempre lhes é amigável.

Natureza selvagem Monique Malcher, ganhadora do Jabuti, mostra a violência contra várias gerações de mulheres paraenses – Imagem: Redes sociais

No plano formal, esses romances buscam maneira de narrar diferente daquela do cânone literário estabelecido pelas elites. E é dessa busca que brota sua força. Um dos traços comuns a vários dos textos é a oralidade. Isso, muito possivelmente, se explica pela influência que os saraus exerceram sobre essa produção. Como descreve a pesquisadora Érica Peçanha do Nascimento no livro ­Centralidades Periféricas: Diálogos sobre Arte e Cultura no Brasil (IEA-USP, 2022), há “um projeto de ação estética que consiste em recriar as vivências, as trajetórias, as práticas e os valores desses sujeitos no espaço social da periferia”.

E esses espaços não se resumem à urbanidade. Monique Malcher, nascida em Santarém, no Pará, ganhadora do Prêmio Jabuti em 2021 na categoria Contos com Flor de Gume (Editora Jandaia), evoca a natureza. “Quero mostrar a complexidade e diversidade do ser paraense, fugir do estereótipo do nortista, combinando o ambiente urbano e a natureza”, diz ela. “Os textos foram pensados como um universo coeso, que aborda gerações diferentes de mulheres que tinham a violência como um ponto comum em suas vidas.”

A autora, assim como Barbosa, tinha um grupo de leitores que a conheciam da internet e estavam interessados pelo livro quando foi lançado. Antes de Flor de Gume, ela produzia zines, pequenas obras autopublicadas combinando, geralmente, textos e imagens, e saía de casa “com vários exemplares na mochila, junto com a maquininha de passar cartão”. Neste momento, ela produz uma zine para custear sua ida aos Estados Unidos, a convite da Cambridge Public Library, onde falará sobre seu livro. A organização paga os ­custos, mas só depois do evento.

Ao mesmo tempo que mostra certa coesão temática e estética, essa produção é, como toda produção literária, marcada por especificidades. “Há um padrão de temas, mas esse modelo está cada vez mais divergente”, diz Brisant, lembrando também que, até não muito tempo atrás, a poesia era o formato dominante. Hoje, sua editora recebe muitos romances e contos. “A cada nova obra, sinto uma exploração estética mais aprimorada.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1215 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Letras periféricas”

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