Cultura

Lembranças de 50 anos atrás, com um pequena contribuição de Tarantino

Charles Manson abalou a hippie e suave Hollywood. A política brasileira e britânica tentaram retrair a MPB e o rock inglês

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No Brasil, o ano de 1969 começou à sombra sinistra e viscosa do AI-5, o Congresso fechado, as garantias individuais suprimidas, a liberdade de imprensa vigiada, os espetáculos censurados – um panorama atroz que ninguém haveria de acreditar ser possível repetir algum dia, não fosse o Brasil o país do impossível-acontece (em 2019 retroagiu não apenas meio século, mas 500 anos).

As prisões enchiam-se de críticos do regime, jornalistas, universitários, secundaristas, escritores, atores, políticos e sindicalistas, se bem que a gana punitiva da ditadura civil-militar se voltasse mais ferozmente contra os músicos, pelo alcance de sua obra. Chico Buarque refugiou-se na Itália. Caetano Veloso buscou asilo em Londres, assim como Gilberto Gil, que se despediu com um blend de louvação e deboche em Aquele Abraço.

Aquele abraço. A ditadura tinha ganas de punir músicos. Caetano e Gil foram para Londres, Chico para Roma, Nara…

Nara Leão, a musa soft da MPB, e seu marido, Cacá Diegues, moravam no terceiro andar sem elevador do Hôtel de l’Orient, no Quartier Latin, a uma quadra da livraria Maspero, templo da esquerda revolucionária, e do barulhento Boul’Mich. Cineasta como Cacá, o prestigiadíssimo Glauber Rocha, a principal cabeça pensante do Cinema Novo, que fora jurado de morte pelos militares, fazia tempo que se escondera na Europa, revezando entre Paris e Roma.

A boa alma do produtor Claude Antoine socorria os cineastas em suas agruras financeiras, enquanto Claude Lefort e Edgard Morin, entre outros, acolhiam providencialmente a diáspora brésilienne nos bancos escolares, legalizando para todos a providencial meia tarifa do metrô e o acesso ao restô universitaire.

O Brasil vivia um momento especialmente asqueroso em 1969, mas para o mundo quase todo foi um ano de inflexão ao fim dos trepidantes, criativos, insubordinados 60’s. Os grafitti da insurreição estudantil de maio de 68 na França começavam a desbotar nos muros e a direita já tinha controlado a situação, com seu menu de lei e ordem contra o chienlit (balbúrdia) dos enragés.

A rebordosa: Nixon nos EUA, De Gaulle na França, Murdoch  começa a manipular a política britânica

O general De Gaulle foi arrancado de seu retiro em Colombey-les-Deux-Églises e, embora viesse a renunciar um ano depois, deixou o terreno aplainado para a vitória eleitoral do conservador George Pompidou sobre o socialista François Mitterrand. Os estudantes conseguiram pouco mais do que a dispensa de tratar os professores com a solenidade devida a um descendente dos Orleans.

A Grã-Bretanha assistira a turbulências estudantis igualmente violentas, agravadas pelas rusgas regionais sanguinolentas entre unionistas protestantes e emancipacionistas católicos na Irlanda do Norte. No início de 1969, o magnata australiano Rupert Murdoch comprou o semanário líder de vendas, o escandaloso tabloide News of the World.

Não foi um mero evento comercial. Murdoch apenas começava a afiar suas reacionárias garras para buscar o sonho de ser o mandachuva das comunicações no país que, nos anos 1960, deslumbrara o mundo com a liberdade da minissaia e da moda de Carnaby Street, a Swinging London, os Beatles, os Stones. Murdoch era o toque de alarme para os trabalhistas no poder, então comandados por Harold Wilson.

Paz e amor, bye bye. Do terraço londrino, os Beatles dizem adeus. A era dos festivais sangra e morre em Altamont, na Califórnia.

Sinal dos tempos foi também aquele que seria o último concerto dos Beatles enquanto banda. Eles estavam preparando Abbey Road, LP que só sairia em setembro e também marcaria a despedida dos quatro cavaleiros de Liverpool como grupo. Em 30 de janeiro, num impulso, eles decidiram subir ao terraço da gravadora Apple e surpreenderam os circunstantes  com um recital completo. A polícia apareceu e encerrou a fuzarca, decretando um imperioso adeus a uma época de sonhos.

A Itália sempre foi um fenômeno à parte. O mal-estar estudantil foi insignificante em comparação ao verdadeiro dínamo das  reivindicações progressistas, o Partido Comunista, o maior do Ocidente. A novidade que surgia no espectro político era o terrorismo, primeiro à direita, depois à esquerda. Os atentados, tais como o da Piazza Fontana, em Milão, dia 12 de dezembro, com 16 mortos e 88 feridos, assustaram o país. Mas o antídoto já estava sendo preparado: as instituições uniram-se, da direita à esquerda, em defesa da democracia. Pouco a pouco, sem lançar mão de medidas de exceção, a Itália iria neutralizar os terroristas.

Os Estados Unidos já haviam antecipado o retrocesso, na gangorra do despertar das lutas pelos direitos civis (mulheres, negros, latinos) e de sua sempre virulenta repressão. À insurreição geral nos campi universitários contra a Guerra no Vietnã, em 1968, com prolongamento na Convenção Democrata em Chicago, que culminou em pancadaria, seguiu-se a posse de Richard Nixon na Presidência. A rebordosa acentuaria-se com a escalada dissimulada  – como dissimulada era toda a política externa da dupla Nixon-Henry Kissinger – no conflito no Sudeste Asiático.

As contradições tinham sacudido até então os Estados Unidos da década de 1960. O fervor belicista do complexo industrial-militar e o fanatismo paranoico dos agentes da Guerra Fria encontravam contrapartida numa juventude encharcada de droga, sexo e rock-n’-roll. A geração flower power assentava tiaras de miosótis na cabeça e rodopiava ao som de tambores tribais em festivais ao ar livre. Os hippies da Califórnia, quando posteriormente sentissem vontade de trabalhar, iriam fundar, entre baforadas de marijuana, a indústria high tech do Silicon Valley.

Em 1969, presenciaram-se os últimos estertores da era dos grandes festivais. Na verdade, a atmosfera paz e amor chafurdou no lamaçal de Woodstock, em outubro, experiência temerária que fugiu ao controle dos promotores, e se estilhaçou de vez em Altamont, norte da Califórnia, em dezembro, quando os Hell’s Angels, que pretensamente faziam a segurança do festival, massacraram um espectador até a morte ao pé do palco onde tocavam os Rolling Stones.

A morte de Sharon pelos lunáticos da Utopia difamou a contracultura e impactou Hollywood

A improvável conexão entre a pulsão de morte e a cultura cândida, amorosa, solidária das múltiplas comunidades hippies da Costa Oeste ganha espaço em Era Uma Vez… em Hollywood, que o diretor Quentin Tarantino acaba de apresentar no Festival de Cannes – de onde saiu sem prêmio, mas com entusiasmados elogios. O foco é a tragédia que vitimou Sharon Tate, a bela e jovem mulher do cineasta polonês Roman Polanski, não por acaso no fatídico ano de 1969.

Charles Manson fora um delinquente juvenil em Cincinnati, Ohio, deserdado pela família. Na idade adulta, achou-se no fascínio da contracultura dos hippies e começou a arregimentar adeptos para a sua própria tribo. O LSD era um atrativo poderoso para a conversão, mas ao mesmo tempo as viagens lisérgicas embaralharam ainda mais a mixórdia ideológica da “família Manson”, como ele a intitulara. O grupo aderiu ao ocultismo e criou a sintomática Ordem do Cão Sanguinário. O guru profetizava uma guerra mortífera e sem vencedores, contrapondo brancos e negros. Dizia-se anticapitalista.

No dia 9 de agosto, membros da tribo invadiram a mansão de Polanski – que estava viajando – em Bel Air, Los Angeles, assassinou Sharon Tate, grávida de oito meses, e mais quatro visitantes que, por acaso, estavam na casa. Deixaram inscrições em sangue nas paredes. Na noite seguinte, o mesmo destino teve o casal LaBianca, vizinho dos Polanski. Charles Manson não participou nem de um nem do outro episódio. Mas sua condição de arquiteto do morticínio valeu-lhe a condenação à morte, logo comutada em prisão perpétua. Ele morreu em 2017, aos 83 anos.  

Catarse. O filme novo de Tarantino, com Brad Pitt e Leo Di Caprio, recua cinco décadas até a tragédia do casal Polanski.

Hollywood, pela lente de Tarantino, parece disposta a, ao mesmo tempo, esconjurar e compreender a tragédia – além de avaliar o papel cinematográfico de Polanski, hoje um proscrito em Hollywood. Com sua propensão ao idílio e à fantasia, o cinema americano sentiu o golpe. A morte de Sharon Tate por um bando de lunáticos da utopia anteciparia, por igual, a progressiva descrença em relação às comunidades anti-Establishment. O que elas chamavam de “O Sistema” estava prestes a voltar a dominar.

A definitiva vitória do progresso contra a barbárie foi saudada pelos americanos no dia 20 de julho, em que a Apolo 11 depositou em solo lunar, pela primeira vez, o astronauta Neil Armstrong. A corrida espacial tornara-se ingrediente da Guerra Fria e o governo Nixon tratou de propagandear a façanha.

Um repórter abelhudo, aqui no Brasil, tentou obter naquela noite um depoimento do general escalado para presidente sobre o feito fabuloso. Não havia celular à época e, ao fim de uma bateria de telefonemas espinhosos e inúteis, o repórter conseguiu extrair do ajudante de ordens do Alvorada a informação de que Sua Excelência preferira dar as costas para a História; exausto de seus afazeres republicanos, recolhera mais cedo. Soube-se depois que era só meia verdade: Costa e Silva não se comovera, de fato, com o triunfo tecnológico da Nasa. Havia passado a noite em frenética sessão de carteado no palácio.

O Brasil em sua melhor expressão.

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