Cultura

Lei Rouanet: da ascensão à queda provocada pelas fake news

Há anos, o principal incentivo à cultura do País sofre ataques ideológicos e enfrenta barreiras em sua aplicação. Seria o fim?

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O ano era 1991, o presidente Fernando Collor e assim como hoje, não havia um Ministério da Cultura. Nesse contexto nasceu a Lei Rouanet, batizada em homenagem a Sérgio Paulo Rouanet, então secretário nacional de Cultura e responsável pela elaboração do principal mecanismo de incentivo à cultura do País. De lá para cá, a lei foi taxada de ideológica, acusada de financiar artistas partidários ao governo em situação e esteve envolvida em uma enxurrada de fake news. Cumprindo uma promessa de campanha, em 23 de abril Jair Bolsonaro publicou a instrução normativa que prometia atacar os ‘excessos’ da lei. Para a comunidade artística, as mudanças decretaram a destruição da produção cultural brasileira.

Quem leva a Lei Rouanet?

Desde a campanha que o elegeu, Bolsonaro acusava a lei de beneficiar os artistas de esquerda. Em entrevista à Record TV na véspera do primeiro turno, o então candidato comentou: “Você tem que ver quem estava no movimento #EleNão. Artistas que há muito tempo vêm mamando na Lei Rouanet. Você não tem quem está no #EleNão que não esteja na Lei Rouanet.”

A declaração distorce a realidade sobre o acesso ao mecanismo. Para receber o incentivo, é necessário propor um projeto cultural no Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (Salic). Até o final de 2018, quando o Ministério da Cultura ainda não havia sido extinto, este era o órgão regulador responsável por analisar as propostas.

Podem se candidatar pessoas físicas, empreendedores individuais e pessoas jurídicas. Há 26% a mais de propostas de pessoas físicas que jurídicas. Entretanto, são as empresas – e seus grandes projetos culturais – que levaram as maiores boladas de dinheiro durante as quase três décadas de existência da lei.

Os dez maiores beneficiários da Lei Rouanet:

  1. T4F (Time For Fun) – R$ 178.406.296,81
  2. Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira – R$ 144.750.649,04
  3. Instituto Itaú Cultural – R$ 144.730.000
  4. Fundação Bienal de São Paulo – R$ 140.854.001,15
  5. Fundação Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) – R$ 121.827.600,93
  6. Fundação Roberto Marinho – R$ 120.471.137,67
  7. Instituto Tomie Ohtake – R$ 116.056.358,18
  8. Aventura Entretenimento Ltda. – R$ 113.013.847,93
  9. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp) – R$ 90.219.875,82
  10. Museu de Arte Moderna de São Paulo – R$ 83.054.332,99

Das dez maiores beneficiárias, três são aparelhos estatais (federal e estaduais, respectivamente): a Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira, a Fundação Bienal de São Paulo e a Fundação Osesp; e duas são empresas derivadas de outras gigantes nacionais: o Itaú Cultural, do Banco Itaú (o maior banco privado do País) e a Fundação Roberto Marinho, do Grupo Globo (o maior conglomerado de mídia da América Latina).

A T4F, maior beneficiária da lei, é a responsável pelo festival de música Lollapalooza (o ingresso para um dia de shows em 2019 custava 800 reais), shows nacionais e internacionais de grande porte e produções de teatro musical. Este último, inclusive, é o maior gênero artístico beneficiado pela Lei Rouanet.

As mudanças do governo Bolsonaro

Uma das formas de conter valores excessivos na instrução normativa recém publicada foi por meio de novos limites por projeto, isto é, quanto cada proponente pode receber a cada projeto que inscrever:

A quantidade de projetos que cada proponente pode receber recursos simultaneamente se mantém: 4 projetos por pessoa física; 8 projetos para os empreendedores individuais; 16 projetos para as pessoas jurídicas.

Para o ex-ministro da Cultura Juca Ferreira, as novas medidas “só vão complicar ainda mais [a lei] e inviabilizar o patrocínio e o fomento”. Ferreira entende que a reformulação da Rouanet não representa propriamente a melhoria da lei, mas integra o desmonte de um conjunto de aparelhos culturais, como o fim do Ministério da Cultura e a suspensão de novos contratos da Ancine pedida pelo Tribunal de Contas da União.

O setor audiovisual também está sofrendo arremetidas especiais. Em decisão de março de 2019, o cineasta Kleber Mendonça Filho (“O Som Ao Redor”, “Aquarius” e “Bacurau”) recebeu uma condenação para devolver 2,2 milhões aos cofres públicos captados para a produção de “O Som Ao Redor”. Confira os limites da instrução normativa para o setor:

Antes da instrução normativa, os projetos do setor audiovisual não possuíam limites específicos.

Se ainda é possível realizar cultura com estes valores, o ministro dos governos Lula (2008-10) e Dilma (2015-16) é pessimista e afirma que as medidas são “um conjunto tosco de quem ouviu o galo cantar e não sabe onde”. Juca Ferreira defende que o governo não é capaz e nem tem interesse verdadeiro em aprimorar a lei. “Trata-se de uma política de terra arrasada”, afirma.

Cultura como economia

Para o ator Ghilherme Lobo, que começou a carreira em musicais no teatro, apesar da necessidade de revisão da lei, o fortalecimento do gênero musical ajudou a estabelecer uma nova indústria nacional.

A Fundação Getúlio Vargas comprovou em pesquisa de 2018 que a cada 1 real captado pela lei, foi gerado em média 1,59 em impostos para a economia local. Ou seja, a lei trouxe um retorno 59% maior do que o valor investido inicialmente.

Ghilherme enfatiza que a consolidação do gênero impacta na estabilidade financeira de outros profissionais envolvidos nas produções, como camareiros, maquiadores e técnicos de palco. O ator também defende que a cultura se tornou atração turística, o que incentiva o consumo e fomenta a economia com passagens de avião, hotéis, restaurantes e shows.

Na imagem, Ghilherme Lobo (à direita) atua na peça ‘Somos Todos Tão Jovens’. Na imagem de destaque desta publicação, o ator (à direita) participa da peça ‘O Senhor das Moscas’ (Reprodução: Instagram)

Cultura para quem?

A elitização da cultura era um dos focos que a instrução normativa de Bolsonaro prometeu atacar. Na nova formatação da lei, a cota mínima de ingressos gratuitos para pessoas de baixa renda subiu de 10% para 20% a 40% do total de entradas.

Também caiu o valor dos ingressos populares: de 75 para 50 reais. É obrigatório que 10% dos ingressos se enquadrem nesta categoria. “Os espetáculos musicais sempre abrem sessões populares com valor reduzido dos ingressos. Não é o suficiente para garantir o acesso universal? Então algo precisa ser feito”, acrescenta Ghilherme.  

Uma pesquisa do IBGE, entretanto, aponta que apenas 10,4% dos 5.570 municípios brasileiros têm ao menos um espaço de cinema; 24,4% têm teatros; 27% têm museus e 37% possuem centros culturais. Com o cenário atual e longe do ideal para que essa medida faça sentido, o que o governo está fazendo é “fantasiar de solução algo que na verdade irá desmontar e encolher a cultura”, considera o ator.

Fora do eixo Rio-SP

A concentração de projetos e verbas para os estados de São Paulo e Rio de Janeiro é citada como um dos excessos da lei. Nesse ponto, a instrução normativa aumentou os limites para cada região.

Para o ex-ministro da Cultura, os novos limites apenas “fingem democratizar”. Isto porque 48% das empresas que pleitearam incentivos vêm dos dois estados: 29% de São Paulo, enquanto que 19% são do Rio. 

Até 2018, apenas 18% do total de empresas que se candidataram à lei receberam benefícios. Dessas, 77% são de São Paulo ou Rio de Janeiro. Somados os incentivos, 69,5% de todo o valor que a Rouanet distribuiu ao longo de suas quase três décadas foram no eixo Rio-SP.

O ator Ghilherme Lobo enxerga perigo no enfraquecimento dos dois pólos culturais a partir desta instrução normativa. Para ele, os dois estados não devem deixar de receber incentivos, mas estimular a criação de novas indústrias culturais pelo país seria bem-vindo. “É natural que, movimentando milhões ou bilhões de reais por ano, tais indústrias nasçam, estabeleçam-se e cresçam em metrópoles”, pondera.

Cultura: arma ideológica?

O ex-ministro Juca Ferreira defende que as mudanças na Lei Rouanet têm como objetivo real combater o ‘marxismo cultural’ que ideólogos de direita insistem que a esquerda produz. 

Em 2014, Ghilherme protagonizou o longa-metragem “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, que se popularizou mundialmente por tratar da deficiência visual e da homossexualidade. Recentemente, o filme sofreu ataques por parte do próprio governo de ter recebido dinheiro de estatais para a produção. O ator explica que, além do ataque ser inverdadeiro e que o filme nunca tenha recebido investimento estatal, que o presidente já tentou deslegitimar artistas anteriormente, afirmando “que mamam nas ‘tetas’ do governo”. Para ele, a instrução normativa “não se trata de uma ação com foco econômico, mas político”.

Ghilherme (à direita) protagonizou o longa ‘Hoje Eu Quero Voltar Sozinho’ (2014) no papel de Leonardo, adolescente que é deficiente visual e se descobre homossexual

Juca Ferreira defende que as mudanças são muito sérias e definidoras quanto ao futuro da cultura. “Sem o apoio das políticas públicas e com o fim do Ministério da Cultura, todo o processo cultural e artístico passa a ser mais lento, mais precário, mais cheio de contratempos e de reviravoltas, na base apenas da vontade dos artistas, produtores e fazedores de cultura e do enorme impulso criativo do povo brasileiro”, diz, em tom pesaroso.

Atualizado às 17h37 de 24/05/2019: O Itaú Cultural esclareceu a reportagem que não utiliza a Lei Rouanet desde 2017, e que desde 2009, iniciou um processo de redução dos investimentos federais em suas produções culturais. Ainda assim, a empresa continua a ser a 3ª maior instituição que recebeu investimentos da lei durante o seu período de existência.

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