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Paris pretende usar as Olimpíadas de 2024 para impulsionar a sua revolução verde

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Apostas. Îlot Fertile será o primeiro distrito parisiense “zero carbono”. A Champs-Élisées ganhará um “jardim extraordinário” antes do megaevento – Imagem: Ilot Fertile/Linkcity e PCA Stream
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A cada quatro anos, quando chegam os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, um desfile de bugigangas arquitetônicas – estádios, velódromos, ornamentos simbólicos como a ­ArcelorMittal Orbit de Londres (2012) – é oferecido ao olhar mais ou menos fascinado do mundo. E, a cada vez, surge a dúvida do legado. Que utilidade terão essas estruturas quando terminarem suas semanas de glória? As respostas vão desde as instalações apodrecidas deixadas em Atenas desde 2004 ao acordo pelo qual o Estádio Olímpico de Londres tornou-se o lar do time de futebol West Ham United.

Paris, que sediará as Olimpíadas este ano, promete ser diferente. A maioria dos eventos será realizada em edificações preexistentes, como o Stade de France, originalmente construído para a Copa do Mundo de Futebol de 1998, ou em locais temporários no Centro da cidade. O vôlei de praia e o futebol para cegos acontecerão em frente à Torre Eiffel, o BMX freestyle e o skate na Place de la Concorde. A cerimônia de abertura será um desfile fluvial de 6 quilômetros de extensão através do que a publicidade oficial chama de “impressionante campo de jogo que os atletas ocuparão assim que terminar: a própria Cidade-Luz”.

O ex-jogador de rúgbi Pierre Rabadan, atual vice-prefeito de Paris responsável pelos esportes e pelos Jogos Olímpicos, diz que o projeto “emblemático” dos jogos não é um edifício, mas a “reconquista” do Sena. Ele está sendo limpo para que maratonas aquáticas e triatlos possam ser realizados ali, e o público possa nadar nele para sempre. Isto faz parte de um projeto nacional, regional e municipal de 1,4 bilhão de euros – o plano baignade, de limpar o rio desde sua nascente até o mar. Reforça ainda a ambição da prefeita Anne ­Hidalgo de transformar Paris naquela que, em momentos hiperbólicos, será “a grande cidade mais verde da Europa”.

Ela quer torná-la um paraíso de baixa poluição e vida saudável, tão amigável quanto possível para pedestres e bicicletas, com estruturas planejadas para promover a vida comunitária. É um empreendimento de longo prazo, que remonta ao antecessor de Hidalgo, Bertrand ­Delanoë, prefeito de 2001 a 2014, mas as Olimpíadas lhe darão um impulso. Perante o que Rabadan chama de “muita resistência política”, os Jogos Olímpicos “nos deram a oportunidade de acelerar a transformação de que precisamos”.

O programa incluiu a retirada do tráfego das margens esquerda e direita do Sena em 2013 e 2016, respectivamente, que eram vias expressas desde a década de 1960. Espaços públicos importantes tornaram-se progressivamente mais adequados para pedestres, como a Place de la République em 2014 e a Place de la ­Bastille em 2020. Uma “floresta urbana” de 478 árvores está sendo plantada na Place de ­Catalogne, uma grande rotunda perto da Gare ­Montparnasse. Existem planos para transformar os Champs-Élysées num “jardim extraordinário” adequado para pedestres.

Outros itens desse banquete pró-pedestres, pró-bicicletas, pró-árvores e anticarros incluem mil quilômetros de ciclovias e 200 mil novas árvores nas ruas. “Paris Respira”, o esquema pelo qual partes da cidade são fechadas ao tráfego motorizado em um domingo por mês, funciona desde 2016. Uma proposta para triplicar as taxas de estacionamento para SUVs será submetida a referendo em fevereiro.

Transformação. A despoluição total do Rio Sena, a “floresta urbana” na Place de Catalogne e a multiplicação de ciclofaixas modificam a paisagem da cidade-luz – Imagem: Guillaume Bontemps/Ville de Paris, iStockphoto e Bertrand Guay/AFP

Há mudanças de pequena escala e locais, além de transformações nos pontos mais famosos da cidade. Foram criadas 300 rues aux écoles, ruas diante de escolas de onde o trânsito foi removido para que pais e filhos possam se reunir e sociabilizar, com outras cem previstas até 2025. Em algumas ruas, as vagas de estacionamento foram substituídas por árvores e floreiras. “Zonas de tráfego limitado”, em que apenas os portadores de licenças poderão dirigir, serão instaladas nas áreas onde ocorrerão os Jogos Olímpicos, e mantidas após seu término.

A busca por uma vida urbana civilizada estende-se a 11 projetos concluídos sob o programa “Reinventar Paris”, com outros 11 a caminho, em que consórcios competiram para desenvolver locais públicos, na condição de alcançarem objetivos desejáveis como construção e ­design sustentáveis, estímulo à agricultura urbana e a mistura de usos e grupos sociais. Um exemplo é o Îlot Fertile (Ilhota Fértil) feito pela TVK, com sede em Paris, anunciado como o “primeiro bairro de zero carbono” da cidade. Lá existem residências e locais de trabalho em blocos parcialmente construídos com pedra ecológica, em torno de jardins e terrenos.

Outro é o Morland Mixité, do arquiteto britânico David Chipperfield e do escritório francês BRS, no qual um edifício cívico da década de 1950 foi transformado em “campus animado”, a incluir um albergue da juventude, apartamentos a preços de mercado e subsidiados, um mercado de alimentos, jardim de infância, oficina de bicicletas e um hotel e restaurante de luxo.

Há arcadas, supostamente inspiradas na Place des Vosges do século XVII, mas com abóbadas parabólicas de concreto que dão uma sensação da era espacial dos anos 1960. Há pátios densamente plantados e jardins nos tetos, do paisagista Michel Desvigne, que usam “métodos de cultivo orgânico”, e uma instalação de arte permanente do Studio Other Spaces de Olafur Eliasson, um “aparelho óptico imersivo” que reflete a vida das ruas parisienses nos tetos dos dois andares superiores da torre central do projeto.

Essas mudanças não são aprovadas por todos. Várias formas de apocalipse no trânsito foram previstas, pelo menos desde o fechamento das pistas expressas do Sena, mas não se concretizaram. Uma campanha no X, #saccageparis, algo como “Paris saqueada”, salienta coisas como latões de lixo transbordando, vendedores ambulantes não regulamentados e a perda de ferragens históricas, que seus colaboradores anônimos dizem ser questões mais prementes do que as ambições verdes da prefeita Hidalgo. É apontado justamente que os subúrbios de Paris necessitam mais de investimento e criatividade do que os arrondissements urbanisticamente abençoados da sua jurisdição.

É verdade que a qualidade do design das intervenções não está no nível de Adolphe Alphand, o engenheiro do século XIX cujos parques e mobiliário urbano complementaram os bulevares projetados pelo Barão Haussmann, ou das entradas art nouveau das estações de metrô, de Hector Guimard. Em geral, elas têm um ar improvisado, com pequenas áreas de vegetação lutando para crescer em amplas áreas pavimentadas. ­Emmanuel Grégoire, vice-prefeito responsável pelo urbanismo, disse que pelo menos alguns desses arranjos são temporários e serão aperfeiçoados. A prioridade tem sido fazer as coisas: “Se você espera que algo fique perfeito, demora demais”.

Talvez a pior coisa que se possa dizer sobre os projetos de Hidalgo é que a retórica consegue superar a realidade. Algumas das “florestas urbanas” prometidas para grandes espaços não vão acontecer, e o programa Reinventar Paris, lançado em 2014, demora a ser implementado. Algumas das novas plantações parecem um pouco insignificantes – mesmo considerando que precisam de tempo para crescer – e comprometidas, com pedaços de vegetação espremidos entre os veículos.

A “cidade de 15 minutos” – conceito promovido pelo urbanista franco-colombiano Carlos Moreno, assessor de Hidalgo – também parece exagerada. A proposta é que as cidades sejam planejadas de forma que tudo o que é necessário para a vida cotidiana – locais de trabalho, comércio, escolas, locais de lazer e esportes – esteja a um quarto de hora de viagem da sua casa, a pé ou de bicicleta, para poder fortalecer as comunidades e reduzir o uso de carros. A ideia conquistou certa fama internacional, graças às teorias conspiratórias de direita que a veem como uma tentativa insidiosa das elites globais de cancelar as liberdades individuais.

O repertório anticarros inclui mil quilômetros de ciclovias e 200 mil novas árvores nas ruas
Em Paris, a cidade de 15 minutos está em todo lugar e em lugar nenhum. Por um lado, a cidade histórica já é uma concretização quase perfeita da ideia, já que um raio de um quarto de hora de quase qualquer ponto cobrirá uma rica variedade de vida e cultura. Por outro, é difícil encontrar muitas provas de que sua atual aplicação à política de urbanismo esteja fazendo muita diferença na vida dos parisienses. O problema da cidade de 15 minutos talvez não seja tanto o fato de ser uma trama diabólica de alienígenas, e sim a sua insipidez.

Mas não há dúvida de que coisas como o aumento de 1.000% no uso de bicicletas e a abertura das margens do rio para pedestres e banhistas serão conquistas significativas. O esforço olímpico que antecede quase todas as edições dos Jogos é acompanhado de certo nervosismo sobre se tudo ficará pronto, mas a decisão de aproveitar ao máximo os consideráveis atrativos da cidade, em vez de acrescentar novos troféus arquitetônicos, é difícil de criticar.

Nas décadas de 1980 e 1990, arquitetos e autores devotados ao tema da arquitetura fizeram peregrinações a Paris para ver seus grandes projetos – a Pirâmide do Louvre, o gigantesco “arco” cúbico de La Défense, a ligeiramente brega Ópera da Bastilha, que eram herdeiros do Centro Pompidou e da Torre Eiffel. Agora nos encontramos olhando para ciclovias e arbustos. Como Paris já é bem abastecida de monumentos, o desejo atual de torná-la mais agradável e saudável para seus cidadãos parece absolutamente adequado.

Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1294 de CartaCapital, em 24 de janeiro de 2024.

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