Cultura

Ladrão de literatura

Uma crônica em busca do tempo perdido

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Quando o inverno começava a mostrar sua cara, apertava, os ossos doíam ao abrir a janela emperrada daquele apartamento que ficava no quarto andar do bairro comunista que habitávamos.

Os nervos do pulso se contorciam e as mãos ficavam instantaneamente geladas quando escorregavam pelo vidro úmido, embaçado, quase fosco, do janelão que pouco permitia ver o que se passava lá embaixo.

O silêncio se espalhava pelos cômodos do lar ainda sem choro de filho e só era quebrado pelo sotaque da vendedora espanhola anunciando suas frutas de primeira qualidade, bem em frente ao número 79 da Rue de la Roquette.

O fog, a chuva fina e o reflexo da água no asfalto refletiam no lustre art nouveau dependurado no teto torto de uma construção mal feita, obra de mil novecentos e cinquenta e pouco, nunca soube ao certo.

Observava esses pequenos detalhes na certeza de que, naquele momento, a melhor opção era mesmo o silêncio. As cartas já não chegavam mais, apesar de o carteiro passar pontualmente às sete, às onze e às dezesseis horas, todos os dias.

Nos últimos tempos, na caixinha de cartas no térreo, havia apenas folhetos promocionais do Prisunic e boletos oferecendo assinatura da Nouvel L’Obs. O carteiro nunca mais trouxe envelopes verde-amarelos com recortes do Jornal do Brasil, aqueles cor de rosa do Jornal dos Sports ou páginas enormes do Estado de Minas com minhas reportagens e, no verso, uma coluna social anunciando quem eram as glamourgirls do ano.

Então líamos jornais clandestinos da América do Sul, o Lutte Ouvrière, o manual de guerrilha de Carlos Marighella e os fascículos coloridos da Maspéro, tudo isso antes de fechar os olhos. Nos dias mais amenos, subíamos o Boulevard Saint Michel e ganhávamos a Rue des Écoles, onde Dalton Trevisan ocupava boa parte da vitrine da Livraria Portuguesa e Brasileira com o seu Cemitério de Elefantes, em bom português, que acabei lendo ali mesmo numa poltrona de couro marrom, tão pouco eram os francos franceses no meu bolso.

Às vezes comia um croque monsieur na esquina, um jantar de pé, sem vinho ou glamour, porque me conformava com as uvas verdes na parreira, raposa velha, melhor assim. E costumava vagar pelo Boulevard Saint Germain, sem direção, cantarolando London London, ou tentando entender aquele crazy pop rock de Gilberto Gil que, magoado e melancólico, colocou apenas duas palavras em português no seu novo disco inglês: Tão e triste.

Eu só conseguia ficar um pouquinho mais alegre quando chegava um disco novo, em vinil ou em fita K-7, trazido por algum amigo ou pelo carteiro vestido todo de azul. Como o do Walter Franco à la de John Lennon na capa cantando I’m not happy now/I’m not sad/I’m just nothing now/Looking to the empty space. O mesmo Walter Franco lembrando que, feito gente, eu te amei como pude e que o sorriso do cachorro tá no rabo.

Havia um resquício de hipismo no ar, nas páginas em papel jornal da Actuel que ia colecionando, uma em cima da outra, formando uma pilha já com mais de quarenta centímetros de altura. As revistas ficavam ao lado do tatame, bem debaixo do pôster de Che Guevara, suporte para o abajur coberto de zinabre que iluminava parcamente aquele nosso ambiente, onde passávamos boa parte do dia.

Era no cantinho perto da janela principal que escrevia cartas e contos, todos eles hoje escondidos dentro de um enorme baú azul, para nunca serem lidos.

Escrevia com dificuldade, quase catando milho, em uma máquina portátil cujo teclado era diferente do nosso, daquele ASDFG. Em toda frase, de repente, aparecia um cê-cedilha perdido, em busca de um cê comum, sem cedilha. O papel era de seda verde da Clairefontaine, hoje com as bordas amareladas, vítimas do tempo, sem valor algum.

Gostava de dar nome aos contos como se fossem pinturas: Menino comendo uvas, Mulher com colete vermelho, Corvos sobrevoando uma plantação de trigo, coisas assim. Hoje apenas recolho os cacos de escritos esparsos na memória porque sequer abro o baú azul marinho, enigmaticamente numerado, para buscar alguma inspiração no cheiro de mofo.

Ultimamente, só tenho disparado a metralhadora no Facebook, soltado o verbo no Twitter, enviado mensagens pelo WhatsApp e me procurado no Waze. Sei lá, o mundo anda muito sem graça, chato pra caramba.

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