Cultura
‘Jurassic Park’, um livro de matemática
Se a franquia fez justiça ao romance de Michael Crichton dos anos 1990, reedição da obra permite retomar o ‘complexo de Frankenstein’ da ficção científica


Tirando proveito da publicidade da Universal, a editora Aleph relança o livro Jurassic Park (R$ 49,90, 528 págs.), de Michael Crichton, o romance de 1990 que deu origem à série cinematográfica iniciada em 1993 da qual Jurassic World é o quarto filme.
Não é preciso apresentar e resenhar o livro em pormenores. Todos sabem do que se trata, pois no último quarto de século se entranhou tanto na cultura de massas quanto Mickey Mouse, Batman ou Pokémon, a ponto de “jurássico” ter-se tornado sinônimo popular não só de qualquer coisa relacionada a dinossauros (apesar de a maioria das criaturas dos filmes ser, na verdade, do período Cretáceo) como de qualquer coisa antiquada.
Mesmo assim, vale a pena relembrar um tópico importante do romance ao qual o primeiro filme não fez justiça e muito menos os seguintes, nos quais o abuso crescente de ação e computação gráfica banaliza o tema e não deixa espaço à reflexão. O enredo segue um modelo comum a outras obras de ficção científica (suspense tecnológico, se preferirem) de Crichton.
Um projeto tecnológico ousado é desenvolvido em um cenário contemporâneo. A ideia pode parecer absurda, ou pelo menos muito à frente das possibilidades de hoje, mas Crichton consegue descrever com realismo o planejamento, organização e desenvolvimento desse tipo de esforço e dar explicações sobre as teorias e descobertas que o tornariam possível. São improváveis (como o sangue de dinossauro encontrado intacto em mosquitos petrificados em âmbar há milhões de anos), mas verossímeis o suficiente para sustentar o enredo. Então, algum imprevisto faz o projeto escapar ao controle dos criadores e espalhar o caos.
É uma versão mais refletida de um tema obsessivo da Holywood dos anos 1930, o “Complexo de Frankenstein” que para muitos escritores de ficção científica da Golden Age era um insulto à sua fé inabalável na ciência e no progresso como solução de todos os problemas. Tal como surge em filmes como o Frankenstein de 1931 (dirigido por James Whale e com Boris Karloff no papel do monstro) e foi cansativamente explorado por filmes menores de terror e ficção científica, é o clichê de “há coisas que a humanidade não deveria saber (ou fazer)” e “pessoas brincando de Deus”, associado a tentativas científicas ou mágicas de criar seres vivos ou inteligências artificiais. Uma superstição intolerável para o jovem Isaac Asimov que, para combatê-la, criou a partir de 1940 a série Eu, Robô e as famosas “leis da robótica”, para assegurar a seus leitores que as futuras máquinas inteligentes não seriam uma ameaça.
Como sabemos hoje, Asimov foi excessivamente otimista. Pode-se argumentar que o uso da robótica, como um todo, tem proporcionado mais vantagens do que desvantagens, mas não há mais como duvidar de que robôs podem ser usados para matar e oprimir, nem como acreditar ingenuamente que possam ser programados de forma a apenas fazer o bem. Em tempo de vigilância global e catástrofes ecológicas, estamos hoje mais conscientes de as soluções da tecnologia podem se transformar em problemas piores que os originais.
Os filmes não souberam mostrar o que o livro de Crichton tem de mais interessante, que é expressar essa questão não em termos de vingança moralista de um deus ciumento contra o atrevimento de humanos que usurpam suas prerrogativas, mas de uma argumentação racional sobre os limites intrínsecos ao conhecimento científico. Quem a expressa é o matemático Ian Malcolm, personagem tão central para o romance quanto desperdiçado no cinema, ao advertir para os riscos do projeto com base na teoria do caos, campo que começou a se desenvolver nos anos 1960 e foi tema de muitas obras de divulgação científica nos anos 1980.
A concepção de ciência e tecnologia da era industrial e newtoniana se fixou em mecanismos previsíveis, criando a ilusão, cara à ficção científica clássica, de que um dia toda a realidade poderia ser eventualmente controlada e administrada – até mesmo a história de uma galáxia, como conta Asimov na série Fundação. A teoria do caos chamou a atenção para o fato de que muitos processos importantes são imprevisíveis, não porque a ciência ainda não os tenha compreendido, mas porque é sua propriedade intrínseca desviar-se cada vez mais dos caminhos originais a partir de perturbações pequenas demais para se notar ou medir. É o que acontece quando Ian Malcolm demonstra como imprevistos não percebidos deixaram o parque temático a ponto de fugir do controle pouco antes de o caos se instalar de fato. No filme, isso foi minimizado e a confusão, aos olhos do espectador, foi causada apenas por um sabotador humano. Também as sequências enfatizam a culpa de personagens gananciosos.
É uma pena, pois o aspecto mais interessante do romance é oferecer a possibilidade de refletir sobre os perigos muito reais da tecnologia sem restringir a questão a erros morais de indivíduos ou à superstição do castigo divino. Reflexão ainda mais importante nesta época em que empresários e cientistas, principalmente no campo da biologia, ignoram a essas ponderações se arvoram em sacerdotes da ciência e se arrogam o privilégio de julgar a ética de seus experimentos e empreendimentos em biotecnologia ditar rumos à sociedade sem ouvir outras especialidades nem submeter suas ideias a um debate democrático. Trata-se de uma obra sobre matemática, na qual os dinossauros são um pretexto e uma forma de dramatizar a demonstração. Para o interessado no tema, o livro continua uma boa introdução. Quem quer apenas ver bichos grandes e ferozes e efeitos especiais espetaculares pode ficar com o cinema.
Um exemplo das reflexões de Malcolm reservadas ao leitor do romance:
–Estamos – disse Gennaro. – Mas o que é essa ordem subjacente?
– Ela é caracterizada essencialmente pelo movimento do sistema dentro do espaço fásico – disse Malcolm.
– Meu Deus – disse Gennaro. – Tudo o que eu queria saber é por que você acha que a ilha de Hammond não vai funcionar.
– Eu sei – disse Malcolm. – Vou chegar lá. A teoria do caos diz duas coisas. A primeira é que sistemas complexos, como o clima, têm uma ordem subjacente. A segunda é o contrário disso: que sistemas simples podem produzir comportamento complexo. Por exemplo, bolas de bilhar. Você atinge uma bola de bilhar e ela começa a rebater nas laterais da mesa. Em teoria, é um sistema bastante simples, quase newtoniano. Como você pode saber a força aplicada na bola e a massa da bola, e pode calcular os ângulos nos quais ela vai atingir as bordas da mesa, pode também prever o comportamento futuro da bola, enquanto ela continua rodando de um lado para o outro. Teoricamente, você seria capaz de prever onde ela estaria daqui a três horas.
– Ok – concordou Gennaro.
– Mas, na verdade – disse Malcolm –, o fato é que você não pode prever mais do que alguns poucos segundos do futuro. Porque quase imediatamente pequenos efeitos, imperfeições na superfície da bola, minúsculas depressões na madeira da mesa, começam a fazer diferença. E não leva muito tempo até que eles superem seus cálculos cuidadosos. Então esse sistema simples de uma bola de bilhar em uma mesa se mostra um comportamento imprevisível.
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