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Jovem maestro brasileiro tem carreira de destaque mundial

De partida para a Ópera Estatal de Hamburgo, Luiz de Godoy é, atualmente, referência mundial em regência coral.

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Por Felipe Brito, em sua coluna de estreia para a CartaCapital*

Radicado na Europa há oito anos, onde se aperfeiçoou, com bolsas de estudos concedidas pelo governo brasileiro e pela União Europeia em Portugal, França, Alemanha e Áustria, o jovem maestro Luiz de Godoy consolidou sua carreira na capital austríaca e é hoje, provavelmente, o músico brasileiro de mais expressiva atuação no exterior – em 2018 sua agenda englobou 129 apresentações em 18 países.

Em Viena, após acumular experiências como regente junto a dezenas de coros, ele integra a direção artística da Wiener Singakademie, o coro sinfônico da Wiener Konzerthaus, o qual já teve Johannes Brahms e Bruno Walter como diretores. No livro “Chorus”, sobre a história do coro da Ópera Estatal de Viena, é o brasileiro quem ilustra uma recente inovação estrutural da casa de óperas mais ativa da Europa: junto ao coro da Ópera de Viena, ele trabalha como regente preparador da Chorakademie (Academia Coral), no aperfeiçoamento de cantores profissionais do mundo todo para alcançarem os níveis e o repertório vigentes na “capital da música”.

Em 2016, foi convidado a disputar com músicos do mundo inteiro a concorrida vaga de Kapellmeister (Mestre-de-capela) dos Meninos Cantores de Viena, o coro infantil mais tradicional e importante da música coral mundial. Mestre de Capela é uma antiga denominação para regentes com atribuições que vão além da performance e englobam a direção artística e a formação musical. Abaixo, uma recente apresentação do coro com Luiz de Godoy em Singapura.

Todas estas atuações renderam ao maestro de Mogi das Cruzes, cidade da Grande São Paulo, o Prêmio Erwin Ortner, como destaque único da música coral vienense no ano de 2016.

Luiz de Godoy (31) sempre esteve envolto ao universo da música coral, seja em reuniões de família ou no coro da regente Dulce Primo, em que deu seus primeiros passos musicais. Conheci Luiz, o filho da dona Lídia, ainda adolescente, ele com 14 e eu aos 16 anos, devido ao anseio de formar um coral na Escola Técnica Estadual Presidente Vargas, na qual éramos alunos do ensino médio. Ele bateu à porta da sala que eu estudava, com o projeto que eu havia escrito para a formação do coro e me propôs a parceria para que o grupo musical fosse então criado. Em algumas semanas, de maneira heroica, com um piano antigo, desafinado e com as teclas se soltando a cada toque, improvisamos o tão sonhado coral.

A trajetória de vida Luiz de Godoy foi calcada por uma série percalços e progressos. Com toda a dificuldade que se apresenta a um jovem negro brasileiro de vida simples, construiu paulatinamente o caminho que o conduziria a ser referência internacional em sua área, como ele mesmo diz, a “música de concerto”, combatendo os estereótipos de clássico ou erudito, muitas vezes vinculados a uma tradição distante da realidade do grande público e exclusivista.

Tendo estudado com mestres do mundo todo, Luiz atribui sua principal formação ao professor paulista Renato Figueiredo, com quem estudou na Escola Municipal de Música de São Paulo. Foi no ambiente profícuo e instigante desta instituição que ele lapidou uma postura universalista, inclusiva e humanista, no que tange à atuação do músico.

Além da potente carreira musical, o regente está em fase de conclusão da sua dissertação que aborda, entre outros temas, a invisibilidade e produção musical sinfônica negra no período colonial.

O jovem maestro não se furta da luta antirracista e, neste caminho, trabalha atualmente numa dissertação sobre o desenvolvimento e a recepção do repertório sinfônico do Brasil sob a perspectiva dos estudos críticos pós-coloniais, abordando o paradoxo do protagonismo e da invisibilidade negra e as bases sociológicas de interações estéticas no contexto imperialista.

Rememorando e parafrasendo o enredo, campeão do carnaval carioca de 2019, da tradicional escola de samba Estação Primeira de Mangueira, Luiz de Godoy é isso e muito mais do Brasil que a “história (dita oficial) não conta”, mas também, de novas trajetórias e narrativas que reescrevem nossos fatos e futuras memórias.

Sobre estes relatos e os novos rumos na carreira em território alemão, leia a entrevista a seguir.

Nascido em Mogi das Cruzes, Luiz de Godoy é um dos mais proeminentes maestros de música de concerto no cenário mundial. Foto: Lucas Beck.

Felipe Brito – Como é a rotina de um Mestre de Capela dos Meninos Cantores de Viena?

Luiz de GodoyA rotina é muito intensa e de muita dedicação. Há todo o processo de escolha e preparação do repertório, depois ver a maneira como eu quero apresentar e como se dá a construção da interpretação com o coro, com os cantores solistas, ensaios com as orquestras e demais parceiros e por aí vai. E em meio a isso tudo, temos gravações de entrevistas em rádios e programas de TV, além das gravações de CD e até filmes.

Em se tratando de um grupo como os Meninos Cantores de Viena, são em média 100 concertos por ano. É você viver a música 24h por dia em um processo constante que envolve a formação musical dos jovens cantores e muita criatividade e flexibilidade para realizar com êxito todas as atividades propostas. O volume de trabalho é comparado a uma orquestra profissional que apresenta um programa musical por semana, trata-se realmente do coro infantil com maior presença no cenário musical mundial.

FB – Quais são os trabalhos à frente aos Meninos Cantores de Viena que você destacaria?

LG A atividade mais marcante são as turnês. Neste período em que eu estive à frente do coro visitamos 20 países. Os programas são pensados de acordo com cada nação que visitamos e isso me proporcionou um grande aprendizado. As turnês que mais me marcaram foram nos países da Ásia, em especial o Japão. Fiquei encantado com a maneira que a tradição dialoga com a abertura para o mundo ocidental e também o apreço que eles têm para com os artistas e a música. Não que seja um modelo perfeito, mas a sociedade japonesa nos dá exemplos muito claros de que é possível se desgarrar do eurocentrismo sem negar a cultura europeia.

“O fato de o Brasil ter vivido o maior período de sua história em regime escravocrata fez com que a música de concerto nacional fosse cunhada com grande influência negra, como tudo mais em nossa cultura”. Foto: Fernanda Nigro

FB – Você está prestes a concluir seu mestrado em regência coral e orquestral pela Universidade de Música e Artes Performáticas de Viena. O que aborda sua pesquisa especificamente?

LG A minha dissertação aborda o repertório sinfônico brasileiro de um ponto de vista que considero importante pelo fato de se utilizar das ferramentas dos estudos críticos pós-coloniais. A crítica pós-colonial surgiu no ramo da crítica literária, inicialmente vinculada ao contexto das ex-colônias britânicas, e se expandiu no mundo todo como ferramenta analítica nos mais variados campos do conhecimento. Contudo, ela ainda é pouco difundida no ambiente da musicologia e, curiosamente, quase inexistente no contexto latino-americano.  

Nós temos diversas abordagens históricas da música que se basearam em um discurso eurocentrista, até mesmo levando à desvalorização do trabalho do compositor brasileiro, corroborada por esta perspectiva. As primeiras histórias da música brasileira negam a qualidade e o valor da música sacra produzida no Brasil antes da vinda da família real em 1808.

Muitos partem do pressuposto que só tem valor a música que passou a existir depois que o artista brasileiro travou contato mais intenso com a cultura europeia. Isso é uma coisa que já há muito tempo, a partir de Kurt Lang e depois Regis Duprat, mas também sob grande influência de Mário de Andrade, deixou de ser o discurso oficial. A música indígena a gente perdeu por ter havido uma aculturação completa.

Mas a música negra brasileira da Bahia, de Minas Gerais, escrita e praticada dentro da tradição erudita já nos primórdios do Brasil-Colônia, é um fenômeno único no mundo, sobre o qual temos registros.

Quando falo de “música negra” me refiro não apenas aos compositores negros como José Maurício Nunes Garcia, sob cuja batuta o Requiem de Mozart soou pela primeira vez em terras brasileiras, mas também ao aparato musical da colônia que contava com a mão de obra maciça de negros, libertos ou não. Minha pesquisa busca interpretar esta história mal e pouco contada e ressignificá-la, a partir da consciência pós-colonial, dos jogos de poder que definiram o que temos de música sinfônica brasileira e a sua recepção, no Brasil e no mundo.

Da mesma forma que o negro foi criar o samba e outras expressões musicais extremamente arraigadas na cultura brasileira, não se pode negar o protagonismo negro brasileiro na produção musical erudita. E se pensarmos o que é a música? Quem a faz e frui? Quem a domina? Ou o inconsciente coletivo do qual essa música surge? A música enquanto expressão humana, enquanto algo fluido, é a expressão do povo em suas ansiedades, do tempo com suas possibilidades e seus grilhões, e neste sentido que digo que a música do Brasil é negra, inclusive no protagonismo literal.

Enquanto o espaço de cantar nas igrejas era, mundialmente, exclusivamente branco, no Brasil este espaço era ocupado pelo negro.

Padre José Maurício, considerado o maior compositor brasileiro do período colonial, foi exaltado por Sigismund Neukomm (1778-1858), um dos principais discípulos do compositor austríaco Joseph Haydn (1732-1809). Há diversos relatos de europeus viajantes surpresos com a qualidade da produção musical brasileira, sobretudo por ser feita por pessoas pretas. Mas isso nunca é dito, nunca foi o foco. É um processo de disputa de narrativas.

É óbvio que temos muita influência europeia. Mas o fato de o Brasil ter vivido o maior período de sua história em regime escravocrata fez com que a música de concerto nacional fosse cunhada com grande influência negra, como tudo mais em nossa cultura.

A minha posição no universo da música, não me faz menos negro. O fato de eu ser muito mais reconhecido fora do Brasil, já evidencia isso”. Foto: Jarem Czuk

FB – Em entrevista ao portal do extinto Ministério da Cultura (MEC), em 2017, você foi colocado como um exemplo de “alguém que venceu o racismo”. Como lidar com a possibilidade efetiva de ter a sua trajetória e narrativas associadas e esvaziadas como um exemplo exclusivo de meritocracia?

LG Como negro consciente da questão racial no Brasil e propagador da pauta de revisitação histórica a partir da causa negra, muitas vezes somos privados duplamente de ter a nossa voz, pelas questões do racismo estrutural e institucional. Inicialmente temos de lidar com o preconceito resistente que nos exclui de ambientes que nos seriam naturais, dada a nossa habilidade profissional.

O problema aqui não são apenas os professores, empresários ou o público que julgam nossa qualidade de forma deturpada por não confirmarmos o estereótipo ao qual estão acostumados. O problema é vivido diariamente, quando você chega pra um ensaio numa sala de concertos e, na portaria, não “querem” acreditar que você é o regente.

Se, apesar disso, a gente trilha um caminho de reconhecimento profissional, nos deparamos com o segundo problema: enquanto ao artista branco, mas também ao negro que ignora a questão racial, é dado todo o espaço para falar de sua atuação artística, o “meu” espaço não costuma ser ocupado com a minha narrativa. Ele é delineado pela questão racial e, desta forma, perdemos mais uma vez a oportunidade de cultivar a igualdade de direitos que tanto almejamos.  

Isso não seria um problema para mim, pessoalmente, se com meu discurso eu pudesse de fato contribuir para a mudança de paradigma que esperamos construir a partir da causa negra, antirracista. Mas a mídia espera que eu fale do racismo do jeito que eles querem ouvir. E aí você acaba sendo privado de falar da sua carreira, da sua construção, do que qualquer pessoa falaria, e ainda tem que ler que você venceu o racismo.

Eu nunca venci o racismo, eu durmo e acordo com ele todos os dias. A minha posição no universo da música, não me faz menos negro. O fato de eu ser muito mais reconhecido fora do Brasil, já evidencia isso.

Eu tenho recebido muito boas críticas pelo meu trabalho nos jornais de todo o mundo. Já no primeiro trabalho que fiz à frente dos Meninos Cantores de Viena o compositor austríaco Balduin Sulzer ressaltou em artigo de jornal minha fluência estética frente ao repertório da tradição europeia, pareada à musicalidade brasileira. A percepção e valorização da inegável componente genuinamente brasileira em minha música foi uma grata surpresa, neste ambiente tão tradicional.

No Brasil, a gente tem uma dificuldade tendenciosa em reconhecer o brasileiro que faz carreira primeiro fora do país.

“Se há pouco tempo ouvimos de um ex-ministro que a universidade é para poucos, imagine o que há de elitismo impregnado num campo tão frequentemente visto como supérfluo, como as artes”. Foto: Lucas Beck

FB – Como foi ter recebido o Erwin Ortner Prize em 2016 e o que esta premiação representa no universo da música coral?

LG Foi um prêmio que me deixou muito feliz. A Fundação Erwin Otner escolhe uma pessoa por ano para premiar como destaque da música coral. Em 2016 iniciei meu trabalho com os “Meninos Cantores de Viena”, também fui contratado para trabalhar na preparação do Coro da Ópera Estatal de Viena, já vinha trabalhando na Singakademie, na Konzerthaus, e eles viram, no conjunto das minhas atuações, esse destaque no cenário musical vienense naquele ano.

Ter ocupado estes espaços todos em Viena, foi muito importante para mim, pois aprendi muito e tive contato com o cerne da produção musical mundial. Trabalhei com orquestras como a de Cleveland (EUA), Filarmônica de Berlim (Alemanha), Filarmônica de Viena, e do Teatro Mariinsky (Rússia) no dia-a-dia, preparando concertos diversos junto aos coros que dirigi. Foi uma vivência muito intensa e abrangente com as referências mundiais da música de concerto.

FB – Conte-nos sobre sua ida para Alemanha e qual será seu papel na Ópera Estatal de Hamburgo?

LGEstou de mudança para a Alemanha para expandir minha atuação naquele mercado, que é enorme. Tenho diante de mim um grande desafio porque vou dirigir um departamento que está sendo criado na Ópera Estatal de Hamburgo, específico para coros infantis e juvenis, que englobará projetos de difusão musical em todo o estado e os próprios coros da Ópera. Além disso, assumirei o pódio numa série de récitas de ópera junto à Orquestra Filarmônica de Hamburgo e ao Ensemble de solistas da casa.

FB – Você considera que há um afastamento da população em geral da música dita erudita no Brasil?

LGSim, pois não há produções suficientes para alcançar uma parcela expressiva da população e, em muitos ambientes, ainda persiste uma cultura da mistificação do inacessível. Se há pouco tempo ouvimos de um ex-ministro que a universidade é para poucos, imagine o que há de elitismo impregnado num campo tão frequentemente visto como supérfluo, como as artes.

As pessoas ainda chamam a música de concerto por música clássica, erudita, como se fosse um produto apenas da erudição, do intelecto ou de um classicismo pelo qual talvez queira-se dizer “tradição”. Neste sentido, defendo o termo música de concerto, por que a única coisa que diferencia a música em que se dá minha atuação das outras expressões musicais é o fato dela ser fruída nesta situação a qual chamamos concerto.

Apesar de ainda estarmos engatinhando na questão da difusão artística em geral, na música há muitos exemplos que nos mostram que estamos andando, e na direção certa. Muitos jovens periféricos tem acesso à formação musical por projetos sociais diversos como o Neojibá na Bahia ou a Sinfônica Heliópolis e o Guri em São Paulo. Mesmo na Áustria, onde 11% da população canta regularmente em coro e toda criança recebe ensino musical básico na escola, contata-se a necessidade de expansão das possibilidades de formação musical de qualidade para as comunidades periféricas e atua-se neste sentido.

No Brasil, esta necessidade é latente e os projetos que se dedicam a isso têm sido enfraquecidos, quando não completamente desmontados pelos governos eleitos.

Enquanto a sociedade não se organizar para deixar claro que só pão e circo é muito pouco, que o Brasil tem recursos pra servir feijoada completa diariamente, muito mais museus, ópera, qualquer coisa da qual a sociedade moderna pode desfrutar, ficaremos escolhendo entre prioridades que não são as nossas e seguiremos numa vida privada de elementos básicos – a felicidade, o prazer, a fruição estética, a autorreflexão, o constate abalar de estruturas individuais e coletivas. É por permitir tudo isso que a arte assusta a quem governa e por isso que ela é tão necessária.  

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