Cultura

Jogo da Memória

Que loucura é essa de anotar todo dia uma coisa que aconteceu na sua vida?

Percebi que não era só a minha mãe que, aos sessenta anos, começou a trocar o nome dos filhos
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Eu era aquele jovem cabeludo que usava calça boca de sino, camiseta justinha manchada de água sanitária, tamancos suecos e uma bolsa de couro cheirando a bode, quando minha mãe começou a trocar o nome dos filhos. Éramos cinco. Muitas vezes, para ela chamar a mais velha, passava pelo nome dos outros quatro até chegar a Ângela.

Não entendia muito bem aquela confusão que ela começou a fazer, assim de repente se, para mim, cada filho tinha um nome e uma personalidade – mesmo que ainda em formação – bem diferentes. E a história não parou aí. Quando eu me casei pela segunda vez, minha mãe continuou chamando minha nova mulher pelo nome da antiga. Ainda bem que a Paulinha sempre teve uma cabeça boa e tirava isso de letra. Eu ficaria uma fera.

Com o tempo, fui percebendo que não era só a minha mãe que, aos sessenta anos, começou a trocar o nome dos filhos. Com as minhas tias acontecia a mesma coisa. Trocavam o nome das pessoas da família, num jogo da memória que chegava a ser divertido. Marlene, Márcia, Lucia, Ana, Vera… até chegar em Ana.

– Ana, me passe o sal, por favor!

Sempre tive muito medo do Alzheimer – que chamávamos de caduquice – mas nunca me passou pela cabeça que aquela confusão que minha mãe fazia, poderia ser um sinal da doença. Achava que era mesmo gente demais na família. Muitos filhos, sobrinhos, tios, novos genros, novas noras, netos. Ela tinha toda razão de trocar os nomes, ainda mais numa família que tinha Nelson, Delson, Élcio e Celso.

Essa minha preocupação vem de muito tempo. Tanto é que, para não ir me esquecendo das coisas, desde o dia primeiro de janeiro de 1975, anoto todo dia alguma coisa que aconteceu na minha vida. Mesmo assim, de vez em quando pego esses escritos e me surpreendo. “Serginho veio jantar conosco”. Que Serginho será esse, eu me pergunto hoje, trinta anos depois de ter escrito.

Esses inúmeros cadernos de anotações viraram material de trabalho. Há algumas semanas, quando escrevi aqui sobre as deliciosas coxinhas que Dona Elvira fazia, se não tivesse anotado um dia, não me lembraria de quase nada. Do seu marido que se chamava Ancelmo, da farinha que ela comprava no armazém de Chaim, daquele cheiro de Óleo Maria que se espalhava pelo bairro do Carmo, tampouco do seu avental todo sujo de ovo.

Quando passei dos sessenta e comecei a trocar alguns nomes, chamando Vera (minha irmã) de Sara (minha filha), Flora (minha neta) de Elisa (minha sobrinha), conversei sobre isso com o meu médico. Ele disse que era normal e ficou orgulhoso de saber que eu anoto há quase quarenta anos, todo dia, alguma coisa que aconteceu na minha vida.

Disse que é por isso que tenho uma memória boa, que não acho tão boa assim porque vivo perguntando pra minha mulher coisas do tipo:

– Como é mesmo o nome daquele ator que ficou em coma, internado no Rio de Janeiro vários dias, que quase morreu?

Se ela não me socorre com um… “Ney Latorraca”, estaria até agora fuçando no Google.

Como se já não bastasse esse amontoado de anotações que ocupam metade dos armários no meu escritório, o meu médico me aconselhou a anotar os sonhos.  Achei a ideia boa e fui em frente.

Preocupado em registrar o sonho toda manhã, nunca mais deixei de sonhar. Não passo um dia sequer sem sonhar. Hoje resolvi dar uma espiada nesses escritos e fiquei perplexo ao perceber que, pelo menos uma vez por semana, sonho com passarinhos. Se não tivesse anotado, nunca lembraria desses canarinhos belgas, pintassilgos e curiós que estão sempre presentes nos meus sonhos.

Se não tivesse esse arquivo implacável de acontecimentos e sonhos aqui ao meu redor, acho que não me lembraria de nada para contar pra vocês essa semana, aqui no site da Isto É.

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