Cultura

Jarid Arraes: “Escrevo para honrar minha ancestralidade”

Em entrevista, a escritora caririense Jarid Arraes conta como busca suas origens ao escrever cordéis e literatura

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De pantufas roxas, ela apareceu à porta para me receber. Você sabe que está entrando no mundo de Jarid Arraes pela cor: o roxo começa a despontar aqui e ali, nas paredes, almofadas e até no seu cabelo, crespo e volumoso, recém-cortado na altura do queixo.

Como escritora, Jarid também tem muito a revelar através de seu trabalho. Foi exatamente para descobrir isso que fui até ali – juro que não foi só pra comer bolo.

Começamos a conversar sobre cordéis, seu ponto de partida na literatura. Foi no Cariri, região localizada no Ceará, que essa história começou.

– Fui uma criança diferente dos meus amigos, cresci cercada de cultura popular nordestina – Jarid começou a contar. – Meu avô fundou uma associação de artesãos em Juazeiro do Norte, a Associação de Artesãos do Padre Cícero, que funciona num lugar chamado Centro de Cultura Popular Mestre Noza. Meu avô foi diretor, depois minha avó, depois meu pai. E eu cresci lá. Então sempre gostei muito de tudo o que as outras crianças não gostavam: cordel, xilogravura, maracatu, banda cabaçal.

– Os jovens acabam se identificando mais com “cultura pop”, né? Que é, na verdade, cultura americana – observei.

– Isso. Você quer se aproximar do que está na moda, do que aparece na televisão, do que é considerado legal. E cultura popular nordestina não é visto como algo “legal”. Mas às vezes os trabalhos de escola aconteciam lá no Mestre Noza, e todo mundo ficava maravilhado porque eu conhecia tudo, me pediam para meu pai dar entrevista. E eles ficavam surpresos quando descobriam.

Desde criança, Jarid lia muito cordel. Ouvia o pai declamar cordel. Mas começou a escrever cordel só de uns quatro anos pra cá.

– Eu achava que não tinha talento. Mas fiquei incomodada pensando: meu avô é bem idoso, ele está com 80 anos. Em breve vai morrer. Um dia meu pai também vai morrer. Se eles morrem, acaba com eles a tradição do cordel na família, porque ninguém mais escreve. Resolvi então começar a escrever.

Foi num sábado à noite que ela sentou na frente do computador para escrever. Nunca havia feito isso. Tinha ao seu lado um cordel do pai para usar como referência, mas percebeu que não ia precisar. Os versos saíram com tanta naturalidade que, dez minutos depois, estava pronto seu primeiro cordel: Dora, a negra e feminista.

– Parece que saiu magicamente, mas não! Estava na minha memória, era algo que fazia parte de mim. Por isso eu tenho mais facilidade pra escrever cordel. Levanto desesperada e penso “tenho que fazer cordel hoje!”, sento e faço. 

Não é exatamente simples, mas a coisa se complica quando ela escreve cordéis sobre figuras históricas como Tereza de Benguela, Dandara dos Palmares, Aqualtune, Antonieta de Barros.

– Lembro que no cordel sobre a Carolina Maria de Jesus você escreveu algo como “era o ano de quatorze / inda de mil e novecentos”. Assim quebrado – comentei.

– É isso mesmo. Tenho que fazer uns “migué” para caber no ritmo. Outra “trapaça” é comer sílabas das palavras. Mas acho que faz parte da técnica. Até nas oficinas de cordel que dou, falo para as pessoas se sentirem à vontade para escrever “errado”. Quanto mais errado, mais legal fica. Dá identidade.

 

No ano passado, Jarid lançou seu primeiro livro de ficção. A ideia foi resgatar uma heroína brasileira negligenciada pela história, a ponto de não haver registros sobre ela – muitos acreditam que ela nem chegou a existir. Assim Jarid deu forma ao livro As Lendas de Dandara, imaginando histórias épicas que preenchessem essa lacuna sobre a heroína de Palmares.

– Escrever ficção em cordel é outra lógica. A história é transmitida pelo efeito de humor, ou o impacto de raiva, ou da própria sonoridade. Escrever As Lendas de Dandara foi complicado porque eu nunca tinha escrito ficção em prosa maior que uma página. Eu também não tinha muita referência, as coisas que eu lia eram muito diferentes do que eu queria fazer. Os livros que têm mais a ver com o que escrevo hoje só fui conhecer adulta. 

– Mas As Lendas de Dandara tem um toque de fantasia. 

– Tem, mas também é bem diferente do que eu estava acostumada a ler: Senhor dos Anéis, As Brumas de Avalon. Mitologia nórdica, europeia. E também não sei se dá pra considerar As Lendas de Dandara como fantasia, porque muitas pessoas acreditam em orixás. Também não acho relevante dar o rótulo de fantasia. Até porque, sinceramente, não vejo o público que lê fantasia se interessando tanto por mitologia africana. Esses dias eu estava procurando mais livros de fantasia para ler. Fui procurar em alguns sites para ver o que me interessava e era tudo a mesma coisa. Castelo, dragão e mago. Minha gente, até na mitologia europeia tem mais coisa do que castelo, dragão e mago. 

– Já que entramos no assunto, o que você acha que é boa literatura? 

– É quando a história consegue fluir de um jeito que eu nem percebo como ela foi parar naquele ponto. O livro Kindred, da Octavia Butler, tem muito isso. Mesmo com todas as idas e voltas no tempo, quando a personagem vai parar na casa do senhor de escravos, as coisas são muito fluidas, vão se emendando de uma forma natural.

– Além da Octavia Butler, os livros da Chimamanda. Gosto muito do Hibisco Roxo, mas juro que não é porque tem roxo no nome! É uma história protagonizada por uma garota, filha de um homem muito rico na Nigéria. Os personagens são muito interessantes e a narrativa, em primeira pessoa, tem muita dessa fluidez que eu estava falando.

Sua atenção se voltou ao celular por um momento, quando ela começou a procurar a capa de outro livro para me indicar: Mel e Amêndoas, de Maha Akhtar. Um livro com várias personagens que têm suas histórias interligadas, e gira em torno de uma mulher que tem um salão de beleza em Beirute.  

Então Jarid lembrou-se de outro livro, de um autor negro independente, que ela conheceu na Feira Preta: Outras vozes, de Plínio Camillo.

– Olha o clichê – ela comenta – o que considero boa literatura é aquilo que me emociona.

O que ela chamou de clichê pode ser considerado, na verdade, algo profundamente humano. Todas as pessoas buscam na literatura aquilo que as emocionam. Ainda que se emocionem de formas diferentes. Ainda que algumas se emocionem com histórias de castelo, dragão e mago. Acontece. 

 

Apesar de ser um trabalho que se faz sozinha, lembrei pela minha própria experiência, que escrever é uma profissão que envolve exposição. Porque escrever é se expor, colocar sua verdade no trabalho; mas também porque exige visibilidade para promover livros, chamar a atenção das pessoas. Perguntei: 

– Mesmo com essa exposição, o que você acha que as pessoas não veem ou não imaginam sobre o trabalho de escritora?

– Elas nem imaginam que às vezes você não quer visibilidade – Jarid contou. – Você quer que seu livro seja famoso, seja lido. É diferente de querer ser celebridade.

– Vamos agora viajar muito no futuro: qual é o seu objetivo dentro da literatura?

– O que quero fazer hoje com minha literatura é honrar minha ancestralidade. Não só a parte negra da minha família, mas a parte branca e como elas se misturam. E aí entra o cordel, que faz parte da minha família nordestina. É algo que me emociona muito e acho que essa é a minha verdade. A verdade que coloco na minha literatura.

Abraçada à sua almofada roxa de franjinhas, Jarid pareceu olhar para um tempo muito distante. Futuro ou passado? Talvez os dois.

– Espero que quando eu tiver uns 60 anos, eu possa ver que publiquei muitas coisas que honraram minha ancestralidade. Porque acho que nunca vou conseguir conhecer exatamente a minha origem, saber quem foi a pessoa negra da família do meu pai que fez com que só ele e eu nascêssemos negros. Não sei se vou saber, então vou usar a escrita para imaginar várias versões dessa pessoa. 

Uma pessoa que pode ser Dandara, ou a protagonista de seu novo livro, alguma personagem de seus cordéis, a Luísa Mahin, a Tereza de Benguela, ou todas elas. Ela diz que, já que não sabe quem foi, então foram todas.

– Quero contar a história dessas pessoas que não puderam contar a história delas. Como os personagens que escrevo hoje são pessoas que tiveram a humanidade roubada delas, contar essas histórias é uma forma de torná-las humanas de novo.

A narrativa fluida que mais cedo ela disse gostar na literatura também estava ali, enquanto ela me contava sua própria história.

E é na escrita que Jarid vai continuar se revelando – e convidando as pessoas para conhecer as histórias que ela tem para contar.

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